UM QUADRO BRANCO SOBRE UM FUNDO BRANCO
Quando Malevich pintava os pássaros eram destinados a rectângulos e as mãos das raparigas a linhas horizontais vermelhas azuis verdes ou amarelas que eram as cores com que Malevich não pintava pássaros ou mãos de raparigas mas a subtração entre os dois. Notável a destreza com que Malevich suspendia o dedo indicador sobre a mesa para dizer Não é mais preciso pintar aquilo que se vê Mas ninguém entendia Malevich e Malevich aborrecia-se. Aspirando à prática das suas considerações Malevich tinha os dois pés sobre um banco quando numa das tardes de 1915 terminou um quadrado preto sobre um fundo branco. Fumava uma cigarrilha e hesitava: Mostrá-lo aos amigos, aos alunos? Expô-lo numa galeria, colocá-lo no museu? Um quadrado preto sobre um fundo branco. Que mais podes querer, Kazimir Malevich? Um quadrado preto sobre um fundo branco. |
Mas Kazimir Malevich queria mais:
um quadro branco sobre um fundo branco. Eriçaram-se em 1918 os cabelos de Malevich perante aquela forma que não era outra coisa senão a eliminação de todas as formas. Malevich pensou: nunca mais pinto um quadro. Aleksandra Ekster pensou: Malevich nunca mais pinta um quadro. Mas Malevich pintou. Muitos esqueceram até o que Malevich disse com o dedo em riste num atelier em Verbovka Resta-lhes apenas a imagem do seu indicador volátil. Alguns juram ainda tê-lo ouvido murmurar em 1935 como se alinhasse a testa com a morte: Então a tua lição, Kazimir Malevich, nunca esteve na eliminação de todas as formas mas na impossibilidade de eliminá-las. Por isso um quadro branco sobre um fundo branco serve unicamente para: 1) redestinar os rectângulos a pássaros 2) abrir as paredes e destrinçar todas as cores 3) entender que o grito antecipa a boca 4) desenhar bocas para o grito 5) isto é, desbocar |
Presented in Porto, 2018. Published in Études Lusophones (France), 2019.