2024.
TODO POEMA É UM KINDERGARTEN Soon to be published in Infâncias em Jogo by PUC-Rio + UFF (Brasil, 2024) Da timidez de Aranha à extravagância das páginas de Álbum de Pagu, a inclinação visual destes trabalhos marca abertamente a, algo vasta, lista de livros de poemas brasileiros com desenhos publicados entre os anos 70 e 80. Se a disposição gráfica de Álbum de Pagu aclara, por exemplo, a decisão esquemática dos trabalhos de Zuca Sardan (Ás de Colete, 1979; Ximerix, 2013) ou Eustáquio Gorgone de Oliveira (Exercícios, 1986), a naturalidade híbrida das composições de Tarsila, Oswald, Jorge e Patrícia instiga generalizadamente o tão ou maior aceno à intermedialidade de Oswald Psicografado (1981) de Décio Pignatari, Rock/Trip (1975) de Jorge Lima Barreto e Mário Vaz, Bagaço (1979) de Nicolas Behr, Os Babilaques (1979) de Waly Salomão, Caderno de Desenhos: Portsmouth – Colchester (1980) de Ana Cristina César, O Guardador de Águas (1989) de Manoel de Barros, de praticamente toda a produção de Sebastião Nunes, ou dos muitos desenhos, além daqueles incluídos em Da Morte. Odes Mínimas (1979), feitos por Hilda Hilst. Também entrevê a tendência para articular poema e desenho, natural para várias poetas brasileiras que, estreando-se pouco depois, vêm publicando os seus livros até à data. Entre elas e eles, o multicultural e linguístico Douglas Diegues, Raïssa de Góes (Volta, 2015), Carla Diacov (A Menstruação de Valter Hugo Mãe, 2017), Jeanne Callegari (Botões, 2018), Ricardo Domeneck e David Schiesser (Odes a Maximin, 2018), Camila Assad e Anna Brandão (Desterro, 2019), Daniel Minchoni (Do ser Poeta a Palhaçada ou De Ser Palhaço a Poética, 2019), Reuben (Risonha, 2019), Chacal e Laura Erber (Brotou Capivara, 2021) ou Lucas Mattos e Maíra Matos (As Coisas Cômodas e as Incômodas, 2021). 2023.
THE POETICS OF LUSO-BRAZILIAN CIRCULATION: LITERARY MAGAZINES AND POETRY MAKING IN A 110 X 110 SQUARE Published in The Value of Literary Circulation (Germany, 2023) The Brazilian magazine Inimigo Rumor, curated by the Brazilian poet Carlito Azevedo and edited by the publisher 7Letras (Rio de Janeiro) between 1996 and 2008, effectively marks the beginning of a regular Portuguese-Brazilian poetic exchange. Inimigo Rumor was notably distinguished not just for its consistent publication schedule but also for its bold thematic orientation. Despite not presenting a strict model vis-à-vis its poetic project, the first issue of the magazine includes the well-known letter addressed by the Brazilian poet João Cabral de Melo Neto to Clarice Lispector on the hypothetical creation of a literary magazine that ought to be called Antologia. As a publication, Inimigo Rumor follows the structure imagined by João Cabral. It is designed with the format of a book in mind; sober, it neither includes illustrations nor does it establish a hierarchy between the texts included. Thus, it resembles »“anything outside of time and space – somewhat like the way we live. The real aim of the magazine will be to start choosing what [parts] of us are worthwhile«.” (Melo Neto 1997: 30). Along with other publications from the 90s, Poesia Semper, CULT, and Bravo, Inimigo Rumor also often performed the function of a platform where the »“the position of some important poets in their mature phase«” was consolidated (Moriconi 1999: 77). The first ten years were marked by the consistency of its design and visual presentation as well as by the economy and rigor regarding choices made about featured authors. Until its tenth number was published, Inimigo Rumor spotlighted mostly renowned authors, which were both well-known to the public and with established careers within the Brazilian literary context – such as, for example, Haroldo de Campos, or Armando Freitas Filho. 2022.
O POEMA IMPOSSÍVEL DE MATHEUS Published as the afterword of História Natural da Febre by Matheus Guménin Barreto (Corsário-Satã, Brasil, 2022) A disposição antagônica de ambas as epígrafes de História Natural da Febre antecipa não só a variedade referencial e interdisciplinar do livro de Matheus Guménin Barreto como avança também a sua lição de falsa simplicidade. Acima, dois detalhes de uma das composições musicais (1944) de Olivier Messiaen, abaixo, um excerto de “Segundo poema” (O Livro das Semelhanças, 2015) de Ana Martins Marques. A não-verbalidade da sequência de Messiaen, que no mesmo ano publica Technique de mon langage musical, desmente e valida, ao mesmo tempo, a coloquialidade da tese de Ana. Não há apenas palavras e há, no entanto, apenas palavras dentro do tempo quotidiano, “estas mesmas que usamos todo dia/ como uma mesa um prego uma bacia”, avessas ao estatuto monumental e exclusivo dos renomados objetos artísticos. Nenhum dos elementos da equação, da bacia à menos acessível partitura, pode ser descartado, e é sobre este jogo de indispensabilidade que a História Natural da Febre se firma. Existe apesar e depois da Naturalis Historia para formar-se, ao contrário do livro enciclopédico de Plínio, como a história individual, crescentemente terrena (“o que vale um poema”; “um rato vale mais que um poema”), não necessariamente mais desinteressada, e antitaxonómica de um corpo febril. 2021.
O POETA DO VALE DO PEREIRO Published as the afterword of Ágil mesmo nu by Miguel-Manso (Macondo, Brasil, 2021) A poesia escrita hoje em língua portuguesa pode ser dividida generalizadamente em três. A dos poetas de umbigo grande, que rebola e se contorce exasperadamente sobre si e que, por hábito, ao não se desdobrar em técnica, perdeu há muito tempo o ouvido. A dos karatekas bodybuilders que, por sua vez, se desdobra em técnicas várias e que, ao fazê-lo de modo excessivo, se assemelha à prática de um fitness métrico, e nada diz. E, finalmente, a dos que, sem esquecer a forma (avessos, porém, à exibição redundante do kime), não só ampliam substancialmente as perguntas narcísicas dos primeiros, como também escrevem a partir do privilégio, dos outros e das coisas, buscando, com algum e confirmado fracasso, respostas e, sobretudo, mais perguntas que, por serem tão coletivas quanto difíceis, encaram humildemente a vida e os percalços do ofício [1]. Miguel-Manso pertence ao último grupo. Ágil mesmo nu, a primeira edição dos trabalhos do poeta no Brasil, reúne, com seleção do próprio, poemas de quase todos os seus livros publicados em Portugal desde 2008, quando, por iniciativa de Miguel, a edição de autor Contra a manhã burra caiu inesperadamente nos colos dos leitores, até 2020, quando a editora Relógio d’Água incluiu Estojo: poesia édita & inédita no seu catálogo. [1] Numa entrevista recente, Adriana Lisboa enumera ainda o grupo dos poetas didáticos que, com petulância, dão voluntariamente lições a quem nunca as pediu. Sem discordar de Adriana, que fala em particular da geração brasileira a que pertence, parece-me que o didatismo de certa poesia contemporânea em língua portuguesa se infiltra, principalmente, sobre a produção dos dois primeiros conjuntos, o dos que rolam sobre si mesmos e, em certos casos, o dos que, sem que ninguém lhes peça, praticam karate no shopping mall. Cf. Hiago Rizzi entrevista Adriana Lisboa, “De olhos bem abertos”, Cândido, n. 122, Biblioteca Pública do Paraná, setembro de 2021. Outra questão seria, obviamente, a da orientação política destes trabalhos que, bem-sucedida ou não, diz respeito aos três grupos e que se evidencia, com base na coletividade, na poesia dos últimos. 2021.
AUGUSTO DE CAMPOS, A CRÍTICA TRANSFORMADA E O ENSAIO PLAGIOTRÓPICO Soon to be published in Haroldopédia (Iluminuras, Brasil, 2022) O desenho, compacto e silencioso, combina dois elementos aparentemente familiares: um pentagrama, que não corresponde rigorosamente a um pentagrama, e quatro notas musicais. Ambos ilustram a ilógica expressão “pentahexagrama” que traz, por carregar a inverosimilhança do símbolo e estar associada ao nome de Cage, a solução de um poema equacional. A leitura, que consiste na decifração do(s) significado(s) da combinação dos três elementos (título, pentahexagrama, notas) e culmina na descoberta do enigma ou na incerteza de ter descoberto realmente o enigma, é atravessada por vários níveis de interpretação. 2021.
VOLTA PARA TUA TERRA: UMA ANTOLOGIA ANTIRRACISTA/ ANTIFASCISTA DE POETAS ESTRANGEIRXS EM PORTUGAL (2021) Published in escamandro (Brasil, 2021) A politização da antologia, ou tão-só a sua ineficácia em acompanhar o ritmo das sociedades pós-modernas, explica novos projetos e designações, como, no caso brasileiro, em que a preocupação central parece ser a identidade, as recentes Poesia Indígena Hoje (2020), Poesia Hoje: Negra (2021) ou Poetas Contemporâneas do Brasil (2021) [3], e, no caso português, a Antologia Dialogante de Poesia Portuguesa, organizada por Rosa Maria Martelo em 2020, ou Volta para Tua Terra, co-organizada por Manuella Bezerra de Melo e Wladimir Vaz e publicada pela editora Urutau [4] em 2021, que, ao denunciar pós e anti colonialmente a violência da estrutura racista e imperial do país, reúne poemas de autoras(es) estrangeiras(os) em Portugal. 2020.
MARIA LÚCIA ALVIM, ESSE GOLPE ETERNO Preface to Maria Lúcia Alvim. Antologia Poética Published by Douda Correria (Portugal, 2020) Os seus cinco livros, que exploram analítica e desassossegadamente uma realidade mística interior em permanente formação e deformação a partir do uso meticuloso de várias técnicas formais, escreveram-se e publicaram-se em décadas onde, no eixo Rio-São Paulo, a técnica se questionava e reformulava a partir das outras artes para que a mensagem do poema, mais política do que intimista ou estética, fosse compreendida pelas massas. O propósito uniformizante e interventivo de poemas como “Brazilian ‘football’” (1964) de Augusto de Campos, de livros como Poema Sujo (1976) de Ferreira Gullar ou de performances como Pelo Strip-tease da Arte (Rio de Janeiro, 1982) do grupo Gang procurava responder às atrocidades da Ditadura Militar. Maria Lúcia Alvim não cabe neste raciocínio. A autora, que pratica eximiamente a redondilha maior, o haicai, a trova e, ao mesmo tempo, o verso longo, irrespirável, dialoga de modo contínuo com a dicção drummondiana, a estrutura semântico-sonora de Jorge de Lima, a arquitetura métrica de Cecília Meireles, a coincidência rítmico-visual cabralina ou a imaginação mitológica de Guimarães Rosa [1], e constrói, desde XX Sonetos e por entre o “ocaso de ser [...] ressurgindo” (XI), um universo efetivamente seu. [1] Autor das duas passagens com que Maria Lúcia abre e encerra, aliás, Romanceiro de Dona Beja. 2020.
A CONSTELAÇÃO GGF Published in Todos os nomes que talvez tivéssemos (Brasil, 2021) Guilherme Gontijo Flores caminha entre as palavras dos vivos e as palavras dos defuntos, de olhos, peito e ouvidos voltados para o que fomos, o que somos e o que seremos. Humilde e profundamente inteligente, vive do e para o jogo: “como inventar uns versos/ e dizer que não são meus/ l’infini du ciel/ c’est l’azur/ le plus/ blasé/ porque de fato/ não/ são” (“Moeurs contemporains”, l’azur Blasé). E reconhece a derrota de um jogo de onde só se pode sair derrotado. Há, claro está, certo regozijo em afirmar-se derrotado perante os ferozes e eternos “estalos da língua”. O que fazer, então, com o sorriso ou a gargalhada, ambos difíceis e desconfortáveis, que se abrem perante um corpo que respira ao mesmo tempo que rui, que existe porque cai, que se ergue por dentro da ruína e da queda? Que é, em si e fora de si mesmo, sempre outro? 2020.
O PRAZER RIGOROSO E A LEITURA PÓS-VERSO Published in Cibertextualidades. Universidade Fernando Pessoa (Portugal, 2020) Apesar de a grande parte das manifestações poéticas interdisciplinares ou intermediais incluir a palavra ou basear-se no(s) significado(s) da(s) palavra(s) para construir-se, num processo em que forma e conteúdo nascem a par um do outro, e apesar de a grande maioria destas manifestações não representar um ataque ao λόγος ou mais especificamente ao verso, a crítica ou os instrumentos críticos que há para lê-la ou ensiná-la são tendencialmente logocêntricos. Além de materializar a incompletude do poema, a interdisciplinaridade, que tanto reconhece no alfabeto as suas vantagens como as suas limitações, desenvolve-se convictamente a par de uma ideia de universalidade, pois o que é mais legível para quem não domina o grego antigo, uma passagem da Ilíada ou o “O ovo” de Símias de Rodes? 2020.
ARNALDO ANTUNES: ATRÁS DA VOZ, TRALALÁ E AS COISAS To be presented at BRASA (US, 2020) O caráter multíplice da voz, que começa e termina no silêncio, e escapa ao mesmo tempo às limitações do sistema escrito, não só nos devolve à coisa, esse espaço incipiente, como nos lembra que, no caso de projetos autorais como o de Arnaldo Antunes, o corpo material antecede o significado. Logo: o murmúrio, o ruído ou a palavra deturpada podem, com a mesma validade da palavra, compor o poema. E, por extensão, a análise do poema. 2020.
EU QUE NÃO SEI CANTAR Introduction for the mixed poetry album I Who Cannot Sing published by Gralha Edições (Brazil, 2020) I WHO CANNOT SING é um exercício de apropriação, colagem musical ou pastiche sonoro. [...]. No que diz respeito a I WHO CANNOT SING, o meu interesse reside em criar, com rigor, outro objeto e regressar ao tempo em que escutávamos poesia e o exercício de escuta era tão importante como o da leitura. A ideia do prazer em que tudo isto assenta, bem como a obsessão pelo início, em que a palavra era, para além de verbal, imagem, gesto e som (ou talvez cheiro?), também podem ajudar a entendê-lo. 2019.
VIBRANTS HANDS (2019), UM FILME BASEADO EM 12 TISANAS DE ANA HATHERLY Excerto da introdução ao filme VIBRANT HANDS de Patrícia Lino apresentada no colóquio Between the Lines: Tradition and Plasticity in Ana Hatherly, University of California, Berkeley (EUA, 2019) 1. Conheci o trabalho de Ana Hatherly em 2008. Tinha 17 anos e acabava de entrar na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Ao estudar sozinha os nomes de Augusto e Haroldo de Campos, encontrei pela primeira vez o de Ana Hatherly. A falta de reação perante os seus exercícios visuais antecipava precisamente os anos seguintes. De interesse, entendimento e admiração. 2. Em 2010, organizei uma exposição, Poesia Concreta: Vinte passos para o Verbivocovisual, na mesma Faculdade de Letras, onde incluí vários dos trabalhos visuais de Ana Hatherly. Junto de Hatherly, estavam nas paredes Sallete Tavares, os já mencionados irmãos Campos, Melo e Castro, O’neill, Alberto Pimenta, o menos óbvio Manuel Bandeira, ou Décio Pignatari. Organizei a exposição por três razões centrais: ninguém, à exceção de Joana Matos Frias, ensinava estes autores e autoras; os meus colegas e as minhas colegas não os conheciam; e, se tinham a oportunidade de lê-los, liam-nos em impressões de pouca qualidade, entendiam-nos pouco ou esqueciam-nos muito rápido. A exposição deu-me duas das lições dos meus 20 anos. Para angariar dinheiro, passei algumas tardes a desenhar no chão da Rua Santa Catarina (Porto). Ao lado dos grandes desenhos que levava comigo e dos amigos que se sentavam lá perto, havia um cartaz que dizia: “QUEREMOS FAZER UMA EXPOSIÇÃO DE POESIA”. Angariamos todo o dinheiro que precisávamos com uma frase que combinava duas palavras que normalmente não vão juntas: exposição e poesia. Estou certa de que quase ninguém, entre os que nos deram dinheiro, entendeu o verdadeiro propósito do cartaz (não tinham, ler poesia e ter tempo para lê-la é um enorme privilégio). Mas a imagem do que luta por alguma coisa tem às vezes mais força do que o desinteresse geral pela coisa propriamente dita. E, por isso, partilhavam connosco o dinheiro do almoço e do café. A segunda lição chegou um pouco depois. Entre os quase 100 enormes cartazes que conseguimos expor na Faculdade, não sobrou nenhum. Acabaram, vim a saber depois, nas paredes dos quartos de muitos e muitas estudantes. Eram bonitos — diziam —, ficam bem aqui. E acolá. Os(as) estudantes apreciavam, contra todas as expectativas e sem saber muito bem falar dela, a poesia visual. VER CARTAZ + INFO DA EXPOSIÇÃO VER TRAILER DE VIBRANT HANDS 2018.
A TEORIA DEMOCRÁTICA DO MINI-BIG BANG: 33 ROTAÇÕES [Averno, 2017] DE LUCA ARGEL Published in Escamandro (Brazil, 2018) No universo minúsculo do poema giratório, construído a partir de rotações metafísicas mundanas, Homero e o ar condicionado partilham o mesmo espaço. E não só: nenhum deles, elementos de uma comparação humorística que efetivamente resulta, ganha evidência sobre o outro na composição. A ausência de tal centralidade — onde Homero ganharia facilmente ao ar condicionado — faz-se a partir de dois movimentos de valor: 1. Homero é tão insignificante quanto o ar condicionado. 2. O ar condicionado é tão fundamental quanto Homero. 2016.
2+2 NÃO SÃO 4: FORAM 4. E HOJE NÃO SE SABE NADA AO RESPEITO. ANTITRADUÇÃO E ANTITRADUÇÃO EKPHRÁSTICA DE NICANOR PARRA Aula aberta na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Portugal, 2016) — Antipoesia: Nicanor Parra não inventou o termo. Enrique Bustamente Ballivián, poeta peruano, escolheu chamar Antipoemas ao livro que publicou em 1926 e Vicente Huidobro incluiu a mesma palavra, "antipoemas", no Canto IV de Altazor (1931). Porém, Ballivián e Huidobro não exploraram o termo com minúcia e, ao servirem-se dele, fizeram-no apenas no sentido da eliminação do propósito comunicativo da linguagem. Quer dizer: ao contrário de Parra, que publica Poemas y Antipoemas em 1954, Ballivián e Huidobro não estavam interessados em pensar o conceito ou a aplicação do conceito a outras áreas do saber. — Primeira provocação: Ballivián e Huidobro não eram físicos e nenhum dos dois conhecia a equação de Paul Dirac. |
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POESIA PORTUGUESA: 2000-2020 Published in História Global da Literatura Portuguesa (Portugal, 2024) Continuando, e sem descartar a importância da herança do princípio intermedial levantado pela geração da Poesia Experimental nos anos 60 e a influência de autores mais recentes, porém mais velhos, como Fernando Aguiar (1956-) ou Américo Rodrigues (1961-) sob a produção jovem, a ideia de globalização, expressa tanto pela publicação destes autores no mercado internacional como pelos múltiplos jogos intertextuais e referenciais dos seus trabalhos, está, além de tudo, por detrás do fazer e da curiosidade pelo potencial tecnologicamente infinito do poema expandido. São disto representativos os trabalhos de Álvaro Seiça, Marta Bernardes, António Poppe, Ricardo Tiago Moura, Alexandre Francisco Diaphra, Sónia Baptista e Raquel Lima. Seiça estreou-se com a publicação de permafrost (2012), um livro de zeptopoemas sms, e publicou, dois anos depois, Ö (2014), um livro-poema circular de uso tridimensional. Bernardes publicou Ulises, um livro de dimensão verbivocovisual, em 2013. António Poppe é o autor de um trabalho interdisciplinar, como, entre muitos outros, o Livro da Luz (2013). Moura fez, por seu lado, dois livros de poesia expandida, Controlo de Qualidade (2017) e POLÍTICA [um resumo] (Portugal, 2020; Brasil, 2021). Diaphra lançou, em 2015, o livro-álbum The Blackbook of the Beats (2015) e vem publicando, regularmente, poemas orais e audiovisuais, como METRóPOLIS (2021), até à data. Sónia Baptista, que escreveu o livro de poemas E na Queda Raposar em 2015, vem fazendo, paralelamente, um conjunto considerável e diverso de trabalhos performáticos e Raquel Lima publicou, em 2019, o áudio-livro Ingenuidade Inocência Ignorância. Em comum, Seiça, Bernardes, Poppe, Moura, Diaphra, Baptista e Lima têm o facto de ter vivido ou nascido noutro país, o que, caso pensemos no multilinguismo, decolonialidade e internacionalismo que, desde o século passado, marcam o fazer do poema intermedial, não me parece um acaso. Os seus trabalhos quebram, a partir da ideia de produção global, a monodisciplinaridade que, em comparação à vasta maioria dos países americanos, ainda define e limita o fazer do poema moderno português. 2023.
"LIFTING + BELLY" Published as the flap of the Portuguese translation of Lifting Belly by Gertrude Stein (não edições, Portugal, 2023) A peculiaridade do conjunto verbal “Lifting + Belly” antecipa e confirma a inclinação, estratégica e metódica, de Stein para brincar com as palavras. Ao não significar absolutamente nada, significa, inversamente, todas as coisas e dá, ao mesmo tempo, nome ao poema de amor lésbico mais extenso e divertido do último século. O prazer e os perigos de brincar estendem-se não só às que o lerem, mas sobretudo às que o decidirem traduzir. Há, claro, nessa volatilidade semântica a sugestão do desejo, que vai e vem, e se transforma tão humorística quanto afetuosamente, entre gracinhas, discórdias e afirmações inconclusivas, a partir da sobreposição anónima e intrincada de duas vozes investidas em comunicar. E tal como se assemelha ao balbucio das crianças, que degustam as qualidades múltiplas do verbo, o jogo da comunicação pela comunicação aproxima-se também do fazer chistoso do poema que, como o amor, é avesso a definições. 2021.
AUGUSTO DE CAMPOS, AS FARPAS VIRTUAIS E OS CIBERCÉUS DO FUTURO Published in Santa Barbara Portuguese Studies (US, 2021) O enigma como processo, que chega até a denominar as Enigmagens (“Código”, 1973; “Pentahexagrama para John Cage”, 1977; 2014: 207-211), existe entre a melancolia da impossibilidade de criar originalmente e o cinismo de, ainda assim, fazê-lo com a consciência da própria impossibilidade. O gesto criador não-original, que apropria o objeto, tampouco original, para escrever o meme, que, por reprodução e desvio, recicla um ou mais códigos familiares para a(o) leitor(a), assenta, por sua vez, na ideia da(o) autor(a) como imagem. Esta(e) autor(a) memética(o), ou a ilusão autoral, transferem a impossibilidade de criar originalmente para a interpretação, porque, assim como a(o) autor(a) não acede ao primário, a(o) leitor(a) não acederá imediatamente ao significado ou à pluralidade de significados do meme não-original. As camadas enigmáticas de significados e de associações, que descrevem grande parte dos poemas de Augusto, materializam, a par da assimilação inviável do pandemónio referencial e informativo do mundo, o pormenor que escapa. Ou a perda, a três níveis: iconicamente linguística (de quem tenta ler, de modo linear-lógico-discursivo, os ícones), intersemiótica (de quem tenta traduzir, de modo linear-lógico, os ícones com palavras) e contiguamente linguística (de quem desloca, de modo deficiente e ilusório, o significado dos ícones para o discurso linear e lógico). 2021.
VENTILADORA FULÔ: VARIAÇÕES SOBRE GALÁXIAS DE HAROLDO DE CAMPOS Published in HC21 (7Letras, Brasil, 2021) 2021. MANOEL DE BARROS E A POÉTICA DO REWIND Published in Materiais para a Salvação do Mundo, Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa (Portugal, 2021) Irremediavelmente obscurecido, o poema, resultado do “desconhecimento” e da diversidade cosmogónica, narrativa e social, inclina-se, ao mesmo tempo, para os objetos (ou “desobjetos”) que, do ponto de vista capitalista, são inúteis e obsoletos. Avesso à ideia de universalidade, à sociedade do consumo e à dinâmica mercadológica, ele, anterior à história e ao papel, surge da terra e forma-se com a terra. Do lado contrário, “[n]o mundo sem terra, tudo ou é produto, ou é consumo, ou é produção” (Leão 2000: 13). A dimensão terrena do poema refuta humoristicamente a dinâmica hostil e exploratória da prática colonial e imperialista, e contém, como um recipiente de objetos escusáveis, o que o desenvolvimento industrial, lucrativo e tecnológico dispensa e larga no chão. O chão materializa, em simultâneo, começo e fim, nascimento e morte, e o poema instrumentaliza o seu caráter transformador. Todas as coisas podem vir-a-ser, independentemente da sua utilidade no contexto da execução e da produtividade. 2021.
UM CORPO QUE PULSA: EDUARDO KAC E A POESIA ESPACIAL Published in Revista de Estudos de Literatura, Cultura e Alteridade - Igarapé (Brasil, 2020) O uso de técnicas absolutamente inovadoras ou inéditas no contexto da poesia brasileira ou latino-americana do último século leva, quase sempre e de modo implícito, à pergunta: o que acrescenta exatamente o poema holográfico aos objetos poéticos tridimensionais desenvolvidos pelos neoconcretos, pelas(os) autoras(es) do Poema/processo, como “Transparência” (1968) de Neide de Sá, ou pelas(os) artistas conceptuais entre os anos 50 e os anos 70, como os Objetos Ativos (1959-1962) de Willys de Castro ou os Bichos de Lygia Clark (1965)? O que traz de novo, mais precisamente, o holopoema para o universo dos livros-poemas ou poemas espaciais criados por Ferreira Gullar uma década antes? 2020.
CONTRA A ANESTESIA, A GARGALHADA CORROSIVA. SOBRE O PROCESSO DE ESCRITA D’O KIT DO DESCOBRIDOR PORTUGUÊS NO MUNDO ANTICOLONIAL Published in Texto Poético (Brasil, 2020) Poder-se-ia dizer que O Kit de Sobrevivência do Descobridor Português no Mundo Anticolonial é uma paródia não-original que cresce a partir da apropriação de mitos, lugares comuns, símbolos nacionais e certas obsessões da cultura portuguesa que promovem uma visão acrítica, exclusiva, auto-centrada e decorativa do passado colonial. As estratégias humorísticas, que dependem da relação entre objeto e ideia, variam à medida que a leitura d’O Kit avança. Há, entre os quarenta utensílios, os que se assemelham a objetos reais (a “Engenhinha”, a “Sebastiana”, a “Cavaqueira”, as “Notas que não fazem sentido para mais ninguém a não ser para os portugueses” ou o “Museu para onde vão todas as coisas fascistas”) e os que, de modo conceptual e menos concreto, se assemelham a certos universos teóricos (a “Amnésica Selectiva”, o “Confortinho Universal” ou a “Indiferença do Ocidente”). Entre os primeiros, existem objetos práticos e quotidianos (a “Naveca” ou o “Disco riscado lusitanístico”), jogos (a “Colónia” ou “Quem descobriu o mundo?”), objetos de coleção (“Esteróis do mar”), bilhetes (“Tour Vocação Atlântica”), utensílios puramente estéticos (a “Pulseira homoafetiva” ou o “Porta-Gama”), sugestões de saúde (o “Dr. Frota” ou “Elixir Revelação Divina”) ou de leitura (“Manual da Língua de Camões” ou “Histórias de Embalar e Outros Contos Infantis”). 2020.
FERNANDO LEMOS E ESTA BUSCA ESFOMEADA Excerto da versão oral apresentada na Universidade Federal do Paraná (Brasil, 2020) Esta língua propositadamente bárbara tem, no caso do Fernando, como principal alvo alguns dos ideais fascistas produzidos e difundidos pela ditadura salazarista. Fernando deixou Portugal por causa dela e foi ainda dentro dela que, em 1949, fez alguns dos seus mais conhecidos retratos: Alexandre O’Neill, Sophia de Mello Breyner, Marcelino Vespeira, Mário Cesariny, Jorge de Sena ou Alexandre Pomar. Série que continuou e estendeu, logo depois, em 53, assim que chegou ao Rio de Janeiro, fotografando Hilda Hilst. 2020.
DEMYSTIFYING IS ACCURATE; LIVING IS NOT ACCURATE Published in the Portuguese American Journal (2020) The process of thinking and rethinking identity, which unfolds in various post-colonial processes, from linguistic to the musical spheres, is included also in this volume. The discussion starts with an analysis of the Cape Verdean community’s affective relationship to Angola, or “Angolamania”. Then, it moves to an exploration of the communities formed by descendants of Sephardic Jews, who were forcibly converted and expelled from and in the Iberian Peninsula in 1492 and 1497. The volume then veers to discuss how the two Portuguese-speaking communities are related and continue to exist, despite the enduring struggle posed by the consequences of exclusion, expulsion, and conversion or Portuguese colonialism, within the context of North American culture. The articles exploring such realities, respectively, “Angolamania: Affective Bonds with Angola in the Music of the Cabo Verdean Diaspora” by Benjamin Legg, and “Judeotropicalism: Jewish Transculturations in the Lusophone New World” by Bonnie S. Wasserman, are, in fact, preceded by paragraphs that call into question the validity of the euphoria with which we tend to approach concepts or manifestations such as saudade and fado (Villar, pp. 39-40). 2020.
P-A-R-A-O-I-D-É: A POESIA MODERNA COMO PRÁTICA ANTICOLONIAL Published in Impérios. Instituto de Ciências Sociais. Universidade de Lisboa (Portugal, 2020) 2. A paródia é a paródia do entendimento redutor da paródia A paródia não se livrou do rótulo por séculos. A intimidade com que se apropria do original (aqui, em sentido amplo) custou-lhe um lugar no topo da hierarquia. Ao contrário da sátira, que satiriza uma ideia ou comunidade gerais, o exercício paródico é cruelmente específico. E, por ser considerada inferior, a paródia consiste sempre numa paródia do entendimento redutor de si mesma. O valor do exercício paródico, uma apropriação pessoal e direta, determina-se a partir da sua competência. Para que a paródia resulte, o texto original tem de ser conhecido do(a) leitor(a), porque a paródia, além de ser um discurso duplo (cópia e negação do parodiado), é a total inversão do código estabelecido pelo original. 2019.
A INDEFINIÇÃO ORIGINAL DO POEMA. UM QUARTO EM ATENAS (MACONDO, 2019) DE TATIANA FAIA Posfácio da edição brasileira de Um Quarto em Atenas de Tatiana Faia 1. Os elementos viscerais da expressão Penso muitas vezes na teoria de Giambattista Vico sobre a poesia (1725), ignorada por mais de um século. Vico dizia que a linguagem poética era primitiva e, que dela, as primeiras comunidades humanas passaram à linguagem racional. E que, portanto, não haveria como separá-las, pois a segunda serve-se das imagens ou figurações (figurata) da primeira e, para chegar à primeira, partimos da manipulação da segunda. O termo poesia, do Vico da Scienza Nuova, inclui todas as formas de criação literária e não as engaveta por técnicas, o verso ou a prosa, nem por géneros. Existe e transforma-se, com aquela ou aquele que a faz, nos inícios dos tempos ou de alguma coisa que está entre dizer “amantes que adormecem/ agarrados um ao outro” ou dizer “amantes que adormecem/ agarrados um ao outro como colheres” (“Alguns poemas portáteis”). Não me refiro à associação óbvia entre a posição dos corpos e das colheres, mas à subtileza visceral da expressão. Os corpos agarrados um ao outro como colheres parecem, além disso, mover-se muito mais do que os primeiros. Movem-se, com efeito, muito mais do que os primeiros; que são imóveis e menos arredondados. 2018.
DANIEL FARIA E O COMPLEXO DE SÍSIFO. O PROCESSO CÍCLICO DA POESIA DA PARTIR DA PALAVRA E DO SILÊNCIO Publicado na Escamandro (Brazil, 2018) A visão e a escuta precedem o gesto poético e existem, num espaço extratemporal, a par uma da outra. Como nota Carlos Azevedo, Daniel Faria mantém-se fiel a esta ideia quando a 14 de Julho de 1993 escreve: “Poeta é o que descobre. Isto é, o que vê primeiro”. Insiste, aliás, na mesma premissa cinco anos mais tarde, ao parafrasear Joyce, “quem começa pela escuta pode ver”. Escutar e ver, resultados do mais pleno silêncio, são, além disso, sinónimos da revelação: há um enorme poder em estar calado. 2018.
RETÓRICAS DEL PODER DE NORMAN VALENCIA. NOMBRES DEL PADRE EN LA LITERATURA LATINOAMERICANA: GRACILIANO RAMOS, JUAN RULFO, JOÃO GUIMARÃES ROSA Y JOSÉ LEZAMA LIMA Publicado en la Revista de Estudios Hispánicos (EUA, 2018) La extensión inmaterial de la figura masculina a las volubles, fragmentarias y asimétricas obras de Guimarães Rosa y Lezama Lima, frutos literarios de la total caída de los sistemas epistemológicos y de sus centros, enseña cuán eficaz y cohesiva es la estructura patriarcal a lo largo del siglo XX. Más: la necesidad de una figura o más figuras autoritarias masculinas es, como prueba Valencia en Retóricas del Poder […], tan grande cuanto metamórfica. Si Fabiano y Pedro encarnan la figura paternal central en Vidas Secas y Pedro Páramo, Grande Sertão: Veredas y Paradiso exploran la inmaterialidad de la misma figura a partir, respectivamente, de la figura demoniaca o de la completa disolución del equilibrio fundador; lo mismo que decir que, a propósito de Lezama, la multiplicación de los centros no corresponde a su extinción. La multiplicación, nos enseña inteligentemente Valencia, es la consecuencia directa de la falta de opciones políticas, formales y sociales. 2016.
"O EXCESSO MAIS PERFEITO" (POEMA DE ANA LUÍSA AMARAL) Publicado na Enfermaria 6 (Portugal, 2016) 1. Tese: exceder. Sair para fora? Excedere, ex/cedere. O excesso. Tudo aquilo que sai para fora? E, no entanto, o mais perfeito: “um poema de respiração tensa/ e sem pudor”. 2. O corpo da tese: “a elegância redonda das mulheres barrocas/ e o avesso todo do arbusto esguio”. Paragem. Perguntas: quantos significados poderá ter “o avesso todo do arbusto esguio”? Respondes: uma imagem impossível dentro de um poema impossível. Perguntas ainda: e a elegância dos homens barrocos? O poema não responde. O poema invejado por Rubens é, por enquanto, imagem: “corpo magnífico deitado sobre um divã,/ e reclinados os braços nus,/ só com pulseiras tão (mas tão) preciosas,/ e um anjinho de cima,/ no seu pequeno nicho feito de nuvem,/ a resguardá-lo, doce”. Tem duas dimensões visuais: Horácio (ut pictura poesis) ou, talvez, Simónides (pictura locguens, pictura poema silens)? 2018.
A PALAVRA COISA: CONVERSA COM ALMANDRADE, POR PATRÍCIA LINO Published in escamandro (Brazil, 2018) O trabalho de Almandrade (1953, Salvador, Bahia) é, no contexto da poesia e artes visuais brasileiras, singular. Influenciado, de modo claro, pelo movimento de Poesia Concreta e sobretudo pelo Poema/Processo, Almandrade fez inúmeras peças que combinam vários modos de expressão literário-artística. Desde dos poemas visuais, publicados e expostos a partir dos anos 70, à pintura ou às peças escultóricas mais recentes, a sua voz interdisciplinar e, além do mais, descentralizada — e com isto me refiro à distância com que trabalha do eixo São Paulo-Rio de Janeiro — estende, independentiza-se e atualiza, de modo absolutamente original, os projetos sintético-ideogramáticos das vanguardas brasileiras do século passado. Deve ser, no entanto, analisada de dentro das vanguardas do século passado para fora; como, de resto, deverá ser lido qualquer poeta brasileiro(a) que, ao defender a ideia de poesia como totalidade ou união de todas ou quase todas as expressões artísticas, produz, apoiando-o ou rejeitando-o, desde do rasgo linguístico dos anos 20 e do poema pluridimensional das décadas seguintes. |
2023.
21 NOTAS CARTOGRÁFICAS Review of Nós Somos Muitas (2022) by Pedro Meira Monteiro. Published in Gabinete de Curiosidades, Relicário Edições (Brasil, 2023) 1. Na capa, o pronome “nós” divide-se, entrecortado, como um slide deslizante, em 4. Assim como o deslizante advérbio “muitas”, que se desmonta, no sentido contrário, em 6. O verbo, que não desliza nunca, une “nós” e “muitas”. Do lado esquerdo, o que parece ser a fotografia microscópica de algo crescendo no sentido horizontal e contrário à verticalidade da tipografia. 2. A costura do miolo está à mostra. Pedro costura Nós Somos Muitas em colaboração com Flora, Arto e Rogério. A visibilidade da costura pressupõe, no sentido da coletividade, outras costuras; ou: a coletividade pressupõe o infinito. 3. Na orelha, Mário Medeiros escreve: “Não poucas vezes me perguntei, lendo Nós Somos Muitas, por onde Pedro gostaria de me conduzir”. 4. Mário logo responde: “Pedro nos conduz generosamente por corpos, fantasmas e sombras, tão cheios de escuta, olhar, fala, dança; por inconscientes desejosos numa vida que se nega a cessar, em moto-contínuo”. Penso: para fazer-se, a resistência tem de partir da ilusão útil do infinito. O infinito é tão-só, e em tempos como estes, o amanhã. 2023.
ÁLBUM DE PAGU (1929) & DIA GARIMPO (1939): DOIS LIVROS DE POEMAS COM DESENHOS Published in Pessoa Plural, Brown University (US, 2023) A ironia paródica da passagem, que cresce à medida que Pagu concentra progressivamente a atenção sobre si mesma (“de olhos terrivelmente molengos/ e boca de cheramy...// [...] Pagú era selvagem/ inteligente/ E besta...// Comeu da mandioca braba...// E fez mal”), desdobrar-se-á, entre alfinetadas críticas, até ao fim da narrativa. Da mulher que não obedece, com irreverência e humor, às regras (“Tia Babá disse que sineiro/ pode pecar.../ ... toco à finados como/ ninguem...”), fitando a igreja ao longe (vinheta VII) [1] sem intenções de entrar, à mulher que não cabe na pequenez dos bons costumes da cidade pequena (“O retangulo insensivel de cabreuva recolhe/ o deleite vulcanico de minha vitalidade.../ quero ir bem alto... bem alto... numa/ sensação de saborosa superioridade”, IX), vamos acompanhando a odisseia “diabólica” de Pagu, que, além de voltar “pra casa sem batom” (X), se metamorfoseia em outras (“Quando eu era avaiana tomava éter”, XV). E não só. O seu corpo esguio que, às vezes, se assemelha ao de uma sereia (XVIII), ao de um pássaro (XXIII) ou ao de uma Maria Madalena prestes a descolar (XXIII), é também o que, nu, recorda os frutos proibidos que comeu no Jardim do Éden (“era a fruta quieu mais gostava”, IXX), passeia descoberto e provocador pelas ruas (“Va e ver si estou na esquina...”, XX), namora em bancos de jardim (“O meu primeiro amor/ que acabou com o segundo” [2], IXXV) e faz sexo com um “galam” perto da inscrição tumular “vítima de sífilis” (XXVI). [1] A disposição desta vinheta, em que a personagem feminina ocupa, isolada, a paisagem pode estar efetivamente na base do desenho da composição de Figura Só, pintada um ano depois, em 1930, por Tarsila. [2] Este pequeno poema entra em diálogo direto com o poema de Oswald, “Adolescência”, incluído n’O Primeiro Caderno do Alumno de Poesia Oswald de Andrade. Além disso, à semelhança do desenho de Oswald, o desenho de Pagu representa dois corpos. Um, feminino e o outro, masculino. 2022.
TRÊS INFRALEITURAS PARA TRÊS POEMAS DE AMOR Published in Catálogo da I Jornada de Poesia Visual, Casa das Rosas (Brasil, 2022) A leitura mais completa de “Amor”, poema de abertura de o Primeiro Caderno do Alumno de Poesia Oswald de Andrade, foi feita por Antonio Sergio Lima Mendonça e Álvaro de Sá em 1983 que, apoiados na morfologia dissilábica do conjunto, começam por apontar que “os componentes do binômio amor-humor irão se tornar dessacralizadores das expectativas geradas pela metáfora romântica”. A possibilidade da queda do h aspirado, gerada pela semelhança fonética entre amor-(h)umor, permite colocar, no mesmo plano, “amor” e “umor”, e constitui o primeiro grande passo deste exercício metonímico de desmistificação. Ao aglutinar “amor” e “umor”, a leitora chega até “rumor”, o terceiro elemento da composição. Começado por “r” que, na “concepção romântica”, “enfeiava o poema”, “rumor” sugere sinteticamente, a partir do que resta da diferença do binómio, o desmantelamento da estrutura tradicional e simétrica do amor romântico ou cortês, estendendo, assim, ao Primeiro Caderno a ideia do amor bruto e selvático cujas grosserias que já perpassavam “Secretário dos amantes” em Pau Brasil (“Beijos e coices de amor”). 2021.
PARÓDIA, INTERMEDIALIDADE E DECOLONIZAÇÃO Published in Práticas da História (Portugal, 2021) A variação contínua do riso, que existe entre o disparate e a atualidade da crença e a violência dos factos, tira, além disso, partido da naturalidade com que o discurso colonial se infiltrou nas nossas culturas, com especial incidência nas culturas dos países que colonizaram, porque o que a paródia faz é resgatar os símbolos que fabricam a verdade, branca, masculina, heteronormativa, e invertê-los, neste caso, valendo-se das propriedades do poema intermedial cuja hibridez se aproxima, como já fiz notar [1], da sua própria mecânica. Apesar de a paródia ou, de modo geral, o humor, bem como o fazer intermedial do poema, serem, até hoje, considerados menos literários aos olhos do poder por não corresponderem, em primeiro lugar, à seriedade cerimoniosa do logocentrismo ocidental [2] e, logo depois, à genialidade individual do homem branco que, bem-nascido e inspirado, cria objetos sem precedentes, a paródia e a intermedialidade não só resistem, como prática, à palavra final dos que sabem, mas também constituem, como a repetição obstinada da mesma prática, uma tradição tão antiga quanto aquela que as excluiu. [1] Cf. “Contra a anestesia, a gargalhada corrosiva: o processo de escrita d'O Kit de Sobrevivência do Descobridor Português no Mundo Anticolonial”, Texto Poético, v. 17, n. 32. Góias: Universidade Federal de Góias, 2021. [2] Cf. Haroldo de Campos, “Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira”, Metalinguagem & Outras Metas. São Paulo: Perspectiva, 2013 [1980], p. 255. 2021.
CONCRET_S COMO FRUTOS NÍTID_S COMO PÁSSAROS: POESIA EXPANDIDA Published in escamandro (Brasil, 2021) Além disso, o que pode ser dito de autoras(es) como Ana Hatherly, E. M. de Melo e Castro, Alberto Pimenta, Augusto de Campos, Wlademir Dias-Pino ou Neide de Sá e resumir os movimentos a que umas(uns) e outras(os) estiveram associadas(os), aplica-se à produção de Fernando Aguiar. O poema intermedial, que segue atentamente o impulso tecnológico do mundo, acaba sempre por antecipar o próprio mundo e as suas idiossincrasias — a ponto de existir temporariamente sem veículo e recepção. Demonstra-se ao mesmo tempo, e sobretudo hoje, num presente acelerado, de informação excessiva e crescentemente visual, cada vez mais pertinente e imperativo. Também por esta razão, o trabalho de Fernando deve ser lido e analisado como um poema desmesurado e imenso, que se reinventa, como a realidade e a(s) história(s), até à exaustão. 2021.
CONCRETAS COMO FRUTOS NÍTIDAS COMO PÁSSAROS: REGINA GUIMARÃES, MARGARIDA VALE DE GATO, MARIA BRÁS FERREIRA Published in escamandro (Brasil, 2021) A coragem e a postura diligentemente política com que Regina sempre ocupou a vida, avessa ao espetáculo da poesia ou “[ao] banqueiro que há em todo o poeta” [8], o hibridismo do seu percurso [9], o cunho oracular, bíblico, semanticamente indisciplinado, fragmentário, surrealista ou até indecifrável dos seus primeiros livros que, sem perder-se, se aclara com o tempo, bem como a dimensão oral, performática e visual do seu trabalho, contrária às idiossincrasias e exigências da palavra escrita, podem explicar por que razão volumes como os mencionados Tutta e Caderno de Regresso não receberam a atenção que mereciam ter recebido nos anos 90 e 2000. Ao mesmo tempo, a autora, que explorou intensamente as múltiplas possibilidades da palavra a partir das memórias da infância, das imagens, do corpo e das minúcias da fala, não tem correspondentes no passado (não sabemos efetivamente de onde vem, em que tradição incluí-la; e porquê? E para quê?) nem no presente. Regina é uma voz sem-par. 2020.
DENTRO DA BOCA É ESCURO. SOBRE POESIA E O FIM DO MUNDO Published in Libretos. Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa (Portugal, 2020) A análise etimológica e histórica da palavra λόγος (logos) pode aclarar a expressão aparentemente paradoxal “lógica poética”, porque λόγος significa “fábula” antes de querer dizer “discurso”. A sua dimensão fantástica liga-se, assim, a outra palavra grega, μῦθος, o mito ou a ação mental que existe no silêncio e precede o “falar natural” (um conjunto de gestos que tinham relação direta com o ritmo e as ideias). 2020.
META-ENSAIO OU TODAS AS COISAS A QUE NÃO RESPONDI Published in Revista Pessoa (Brazil, 2020) Ler Manoel de Barros significa ler 24 volumes de poesia. Ler todos os textos que se escreveram sobre o poeta significa ler, em média, mais de uma centena de dissertações de mestrado e doutoramento. Questionar ambos, sobretudo os 24 volumes de poesia, pode significar questionar um e outro por muito tempo. Aponta isto num papel: “não tens todo o tempo do mundo”. 2020.
UMA CIDADE COM POEMAS BRILHANDO. AUGUSTO DE CAMPOS CONVERSA COM PATRÍCIA LINO Published in Revista Pessoa (2020) Patrícia: Para lá do acesso fácil e facilitado aos aparelhos tecnológicos, a que se deveu, na sua opinião, a criação de nichos na internet que privilegiam o diálogo entre imagem e palavra? Como imagina no futuro o uso da internet com relação a estas práticas? Augusto: O que eu acho é que a Poesia Concreta, tal qual ela se configurou nesse momento mais histórico, previu desenvolvimentos tecnológicos da poesia, de um mundo por vir da tecnologia, que nós não conhecíamos ainda. Quando lançamos a Poesia Concreta no Brasil, a gente tinha uma televisão a preto e branco. Em 1992, o meu computador doméstico era um Macintosh Classic, 9 polegadas, preto e branco; eu achava uma maravilha. 2020.
ALGUMAS NOTAS SOBRE A LITERATURA A PARTIR DE CLARICE LISPECTOR OU ALGUMAS NOTAS SOBRE CLARICE LISPECTOR A PARTIR DA LITERATURA Published in Visões de Clarice Lispector: Ensaios, Entrevistas, Leituras. Universidade Federal do Ceará (Brazil, 2020) Precisamos, além disso, da estrutura narrativa deformada e deformante d’A Maçã, que destabiliza, através da linguagem e por esta ordem, personagem, narradora e leitor(a), para chegar até à Paixão segundo G.H. (1964) que assinala não apenas a perda da alma da protagonista desencadeada por um evento trivial, mas também a metamorfose da narrativa, questionada e desconstruída desde dentro para dentro, quando, de modo absolutamente aporético, o texto existe e resiste num espaço de lógica e dívida, muito além do uso estético da linguagem; antes religioso, místico, despersonalizado e alienado — acima de tudo, filosófico. E o que é a literatura, pergunto, senão uma ideia, em primeiro lugar, da filosofia? 2018.
TWO BRAZILIAN GRAPHIC NOVELISTS: GABRIEL BÁ AND FÁBIO MOON: A CONVERSATION WITH PATRÍCIA LINO Published in Latin American Literature Today (2018) The form in which the graphic novel manifests its interdisciplinary nature is often associated with comics or the visual language of young adult books. This common and generalized association between both worlds and the unfortunate conception of young adult books as an inferior type of narrative denies the graphic novel what it has deserved since its appearance in the seventies: a place in academia, literary and inter-semiotic studies, and our bookshelves. In Brazil, there are few but very interesting cases of authors who decided to create interdisciplinary works against all odds. The continued effort to create a simultaneously verbal and visual object that is as complex as traditional novels and the effort to intersemiotically translate a verbal object into an image are now starting to pay off. 2018.
TARSILA, BLAISE, OSWALD E O LIVRO ESPACIOTEMPORAL Excerto da versão oral do texto apresentado no colóquio Modernisms: Intertextualities and Dialogues with Contemporaneity, University of California, Berkeley (EUA, 2018) O exercício performático [d'O Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade] faz, além disso, uso de uma série de elementos estéticos, como o tempo, o espaço ou o movimento. Os desenhos dialogam, de resto, com uma das mais interessantes estratégias da literatura do séc. XX apontada por Joseph Frank no seu conhecido e polémico ensaio “Spatial Form Modern Literature”, a da forma espacial [1], ao ocupar parte considerável da página. A presença central do desenho, a par da linguagem lúdica, mínima e lúcida, mais provocadora do que nacionalista, exibe as vértebras da matéria. [...] Um dos problemas colocados aos leitores de Frank reside na antítese errónea entre o que é a forma espacial e o que é a forma temporal; ou na ideia de que, para atingir a espacialidade, a obra deve renunciar à forma temporal. Os fundamentos de tal antítese são questionáveis pela razão óbvia: não é a forma espacial a base perceptiva da nossa noção de tempo? [2] [1] A mais conhecida definição poundiana de imagem foi publicada em 1913 ("A Few Dont’s by an Imagiste”, in Poetry, I (March 1913), pp. 200-201). É sobretudo dela, dos trabalhos de Eliot e Joyce, bem como das considerações de Ephraim Gotthold Lessing em Laokoon sobre a poesia e a pintura (1963 [1766]), que Joseph Frank (“Spatial Form in Modern Literature”, in Sewanee Review, LIII, 1945) parte para falar de uma tendência literária espacial, em que a sequência da narrativa (narrative sequence) e a história (history) são substituídas pela mítica simultânea (mythic simultaneity). O que leva, através de sucessivos jogos disjuntivos, à corrosão do caráter contínuo da prosa em inglês. Sobre o caráter problemático da teoria de Frank, recomendo a leitura do ensaio de Walter Sutton, “The Literary Image and the Reader: A Consideration of the Theory of Spatial Form” (1957). [2] Cf. Mitchell, “Spatial Form in Literature: Toward a General Theory”, 1980: 542: “All our temporal language is contaminated with spatial imagery: we speak of "long" and "short" times, of "intervals" (literally, "spaces between"), of "before" and "after"-all implicit metaphors which depend upon a mental picture of time as a linear continuum”. A prioridade histórica e psicológica da espacialidade foi já motivo central de variadíssimos estudos. Vide, por isso, também Max Jammer, Concepts of Space (1954). 2016.
DICIONÁRIO DA POESIA KÍNICA (EXCERTOS). Anexado ao ensaio PARA ACABAR DE VEZ COM O ESPRIT DE SÉRIEUX: OSWALD DE ANDRADE E A FISIONÓMICA VISUAL Aula aberta na Universidade do Minho (Portugal, 2016) Antropofagia, s.f.: o ato de comer carne humana. Cf. Homero (Od. IX), Estrabão (4.5), Heródoto (1.216), Thevet (La cosmographie universelle, 1575), Jean de Léry (Histoire d’un voyage faict en la terre du Brésil, 1578), Montaigne (Essais. I, XXX, “Des cannibales”, 1580), Claude D’Abbeville (Histoire de la mission des pères Capucins en l'isle de Maragnan et terres circonvoisins, 1614) et alia. Askêsis (ἄσκησις), s.f.: esforço físico. Exemplo: percorrer, como Diógenes de Sínope, grandes distâncias — de Atenas a Corinto —, de um festival ao outro; para, além de pregar o ensinamento do kinismo, observar as multidões. Bathos (βάθος), s.m.: profundo. Podem encontrar-se as primeiras menções a este termo em Aristóteles. Não tratará nenhuma delas, porém, de definir rigorosamente o conceito nem tampouco de esclarecer o significado da palavra. βάθος é, antes de mais, o resultado de um πάθος (pathos) mal sucedido. Por outras palavras, faz-se uso do termo βάθος para mais bem definir πάθος. Este último, introduzido e definido com rigor ao longo de várias passagens da Ética a Nicómano (II.5, 1105b19-21), da Metafísica (V.21, 1022b15-22) ou da Retórica (II.1, 1378a20-21). A acepção moderna de βάθος é cunhada por Alexander Pope (Peri bathous or The art of sinking in poetry, 1727) e questionada por ensaios mais tardios e tão importantes como Ueber das pathetische (Do patético, 1793) de Schiller, que, à semelhança de Longino, atribuem à considerada boa arte o talento de despertar o sofrimento (pathos) no(a) leitor(a). βάθος é o contrário de ὕψος (hypsos). Profundo # alto. E Peri bathous or The art of sinking in poetry é, por sua vez, a paródia de Περὶ ὕψους (Peri hypsos) de Longino; traduzido, em português, por De Sublime. |