[THE LOS ANGELES WEATHER REPORT. BRAZIL. 2024.]
[A ILHA DAS AFEIÇÕES. CÍRCULO DE POEMAS. BRASIL. 2023.]
E ESTE PAÍS AONDE CHEGAM É IMAGINÁRIO porque há amores que são como países de imaginação e essencialmente porque as mulheres vivem longe uma da outra. A esta ilha, onde se fala o grande idioma dos passarinhos, chegam, como rouxinóis delicadas aéreas, desnudas e lindas. E fazem, sob cobertas e lençóis entre muitos beijinhos, promessas mudas e elevadas num tempo sem tempo, deus, escadas ou automóveis como duas Pirras sem Deucalião a arremessar os sonhos para trás, ou não mais que duas rainhas tortas. Cada partícula deste país novo é o país inteiro e aqui onde cachalotes flutuam num céu aquático e onde aos pinotes vêm atrevidos os pardais debicar o miolo ardente e suspenso dos medronhos não existem portas nem a falta batente do punho na matéria. A Ilha das Afeições não consta na Enciclopédia Planetária das Ilhas. E se constasse como grafariam os especialistas o testemunho das formigas, dos cedros e dos galiões? [RUÍDO MANIFESTO. BRASIL. 2021.] O GRANDE PROBLEMA DA POESIA Você certamente sabe por que Hefesto coxeava leu os lindos e airosos dóricos de Bión de Esmirna memorizou quantos graus fez a cabeça de Dido ao mover-se tristonha por entre os espectros, leu como não, os 34 cantos do Inferno, discutiu uma e outra vez, o propósito da gargalhada pública da doutrina cervantina, não passou um ano, um sem que reabrisse os idílios, recalcando, obstinado a importância dos clássicos, o que têm de clássico os clássicos, os gigantes e os génios, os semideuses e os prémios. Você certamente dedilhou na página o ritmo seco e galopante do verso futurista, gozando açulado, tal o bofetão na escuta, a métrica delirante. Urrrrà! Non più contatti con questa terra immonda! Declamou expressivamente antigos e modernos, alto para que escutassem a justeza da sua interpretação sorvida, como é hábito, na mais estudada análise escolar do país. E leu, claro, o país, berço de prodígios tão extraordinários, todos estes campos cheios de uma História imperial, esplendorosa e soberana. Esqueceu-se, porém, de questionar o conforto do nome de entortar-se, corpo anguloso, para entrar distintamente e de olhos abertos, no mundo todo. Sequer legitimou as doidas orgias do Palácio de Ítaca, o não tão digno mito do arado, ou a criatividade da disputa holográfica de Estesícoro. Tampouco quis saber o que sussurraram as mulheres, pilares intemporais do engenho, no silêncio ou contradisse o tempo linear, os bastidores do mérito a branquitude da escrita, quanto mais a própria escrita a forma e a vida, tão redonda como variada, tão farta como um tomate arremessado à órbita dos caretas. Você certamente não estudou a história dos trejeitos a ciência do desconhecimento, o difícil canto gestual que se lê no espaço e na escuridão, com a inteligência assombrosa e demorada, de quem perde e tropeça. E este é essencialmente o grande problema da poesia regrada, enfeite da nação e da narrativa, da raça simulada e da comitiva, cómoda no ofício, competente na beleza fácil, alheia à esfera natural, ao corisco e à cambada milenar que o assopra até ao fogo desmedido. [DO VOLUME DYLAN 80. CORSÁRIO-SATÃ. BRASIL. 2021.] DEAREST MR. JONES Passavas os dedos pelo epílio do Banho de Pallas quando o teu cão morreu. Incrédulo, achaste graça na coincidência. Canhim morde, canhim morre. Actéon vai ou vive. Quem decide? A vida, tão real como a literatura, dois grãozinhos cúbicos no café, e a calma. Tu, que curioso leste também, os modernos sabes como importa a apreciação miúda e ínfima das coisas. E apesar de nunca o teres entendido, repete-lo aos amigos, como se te tivesse sido dado pela coalizão secreta dos leitores de poesia o talento invulgar de viver bem. Preparas-te para dormir, um dos polegares sobre os olhos. Como te cansaste. O cão não volta, mas o tempo tampouco cessa. Sonharás com Micenas, H. Schliemann aquela ópera de que gostas tanto, lindo e inquietante tornado de referências. Ah e as tragédias, o destino, os dias comuns ficarão marcados pela minúcia com que dúctil, manuseias os clássicos. Acima das sobrancelhas, com os braços abertos ou sob a pontinha do nariz soberbo. É quando ouves o grande ruído lá fora. Apressas-te até à janela intrigado pelo som crescente. São gritos, libélulas e tambores. Uma estátua que tomba alçada pelo futuro. Não o entendes. Nunca entenderás o furor e o tesão do canto, por que meio mundo enraivecido, algo rancoroso, tão insolente se presta a tais disputas. Afinal, a beleza reparte-se pelos muitos livros no silêncio da tua casa. Que grunhidos podem, enfim haver maiores que a tradição? Adormeces. [DA ANTOLOGIA POETAS CONTEMPORÂNEAS DO BRASIL. BRASIL. 2021.]
USINA NUCLEAR Sobrevivi às tias, ao mar e ao cânone à cantada gutural e seca dos macacos ao disparo do canhão e às mazelas dos gatos. E franzindo a sobrancelha sobrevivi também ao fervor copulativo. Comprei cactos, vassouras, panelas. Sou um erro do sistema, “uma usina nuclear”, disse ele gracejando. Afinal sobrevivi à nação do eterno ontem e em silêncio, corroborei o receio dos inimigos: um grito sem volta. Como sobrevivi, não importa: talvez em silêncio, talvez cantando. Aborrecida, não pude senão, furiosa agarrar-me ao tempo, trepar as costas largas dos deuses. Sobrevivi também ao pater familias e ao braço, inquieto colossal e farto da escrita. Aqui estou entre a tradição e a voz, escrevendo contra um país burro. Impossível na verdade, roçar a língua na palavra lúcida, e responder: como sobrevivi a este braço potente que é a extensão de um corpo teso, quadrúpede dizendo e insistindo, mais do que tudo crendo na bizarrice do poema primo e cintilante? [DA ANTOLOGIA DE POEMAS NÃO É ISTO UM LIVRO. COLÔMBIA. 2020.]
CALEIDOSCÓPIO A suspensão coloidal das nuvens no trânsito. O número de habitantes de Singapura (新加坡共和国, 5 000 000, [114.º]). Estar de joelhos onde acabem as tuas costas. A cor azul dos teus atacadores no tapete da entrada. Uma péssima tradução de Aristóteles. Andar para trás na Pan-American Highway. Como não há semelhanças entre um vinil dos Smiths e um moinho de vento? São ambos processos de fragmentação: please please please let me get what I want Os solavancos homéricos do autocarro nas manhãs onde não beijo ninguém. O crânio dançante das galinhas. Saber que o jazz se ouve de barriga para o ar. O rapaz que me disse aos 6 que eu era uma varanda ensinou-me o que era uma metáfora. A + B = C. Saber quantos fonemas tem a língua portuguesa. Expulsar o gato. Ficar a sós com Schrödinger na caixa. "Só plantará um jardim de cabeça para baixo quem não ler a Historia Plantarum". Naná quem disse. Uma ferida é a interrupção da continuidade do tecido corpóreo. "Nonsense Botany" foi o que escrevi num bilhetinho para Naná. Naná não respondeu. São 31. Se Sócrates sorriu para a morte de dedo em riste, por que não haveria eu de sorrir-te na fila do metro? A primeira nódoa na camisa foi a tua boca. A indecisão do pássaro em afogar-se no charco ou o primeiro salto dos jogos olímpicos. Pintar um quadro numa praia de nudistas. O movimento centrífugo que os mamíferos desenham antes de deitar-se. Aprender que o amor não é um rondó: três couplets, quatro ritornellos, um coração só, A-B-A-C-A-D-A mão no seu lugar: aos ombros te carrego pelos lábios. A tosse pneumática a 15 de novembro. As unhas raspadas. O suicídio do hamster Tobias a 5 de janeiro. Cf. Werther. A minha festa de aniversário de 1999. A tua saia. Tu. O último massacre do Sudeste Asiático, quão caro está o tabaco, o preço da papaia, uma nação nas meias. Ser perpendicular à porta de tua casa. A vermelha, que rodopiava. O lavatório, o queixo. Dois olhos no espelho: girl, girl that I see,/ is there a literary-est mirror than me? UM QUADRO BRANCO SOBRE UM FUNDO BRANCO
Quando Malevich pintava os pássaros eram destinados a rectângulos e as mãos das raparigas a linhas horizontais vermelhas azuis verdes ou amarelas que eram as cores com que Malevich não pintava pássaros ou mãos de raparigas mas a subtração entre os dois. Notável a destreza com que Malevich suspendia o dedo indicador sobre a mesa para dizer Não é mais preciso pintar aquilo que se vê Mas ninguém entendia Malevich e Malevich aborrecia-se. Aspirando à prática das suas considerações Malevich tinha os dois pés sobre um banco quando numa das tardes de 1915 terminou um quadrado preto sobre um fundo branco. Fumava uma cigarrilha e hesitava: Mostrá-lo aos amigos, aos alunos? Expô-lo numa galeria, colocá-lo no museu? Um quadrado preto sobre um fundo branco. Que mais podes querer, Kazimir Malevich? Um quadrado preto sobre um fundo branco. Mas Kazimir Malevich queria mais: um quadro branco sobre um fundo branco. Eriçaram-se em 1918 os cabelos de Malevich perante aquela forma que não era outra coisa senão a eliminação de todas as formas. Malevich pensou: nunca mais pinto um quadro. Aleksandra Ekster pensou: Malevich nunca mais pinta um quadro. Mas Malevich pintou. Muitos esqueceram até o que Malevich disse com o dedo em riste num atelier em Verbovka Resta-lhes apenas a imagem do seu indicador volátil. Alguns juram ainda tê-lo ouvido murmurar em 1935 como se alinhasse a testa com a morte: Então a tua lição, Kazimir Malevich, nunca esteve na eliminação de todas as formas mas na impossibilidade de eliminá-las. Por isso um quadro branco sobre um fundo branco serve unicamente para: 1) redestinar os rectângulos a pássaros 2) abrir as paredes e destrinçar todas as cores 3) entender que o grito antecipa a boca 4) desenhar bocas para o grito 5) isto é, desbocar A PANTUFA
I As nossas enormes pantufas tinham orelhas, bocas e dentes para que desbravássemos o chão, a casa e os pais e suportássemos com um leão nos dedos o frio português As pantufas vendem-se no supermercado, são para crianças (porque os adultos, alguém disse, parecem ridículos com elas) e o seu preço sobe ou desce a partir do quão exótico o animal é. Mas nem todas as pantufas têm a forma de um animal, exótico ou não, e nem todas as crianças têm pantufas, com a forma de um animal ou não. Nós tivemos um par cada um, cuidámo-lo, crescemos e esquecemo-lo como esquecemos o conforto do nosso país, da casa e dos pais por agora desbravarmos outras terras e outros idiomas, estrangeiros, tu e eu sem um leão nos dedos, com algum azar, solidão e brio. II Pantufa vem do francês pantoufle; em inglês diz-se slipper (do verbo to slip, e lembra slippering, que é um castigo a chicotadas, reguadas ou chineladas. Atroz, absoluto). Pantufla, do espanhol, tem entre as fonéticas a mais cheia e confortável: como devem ser de resto as próprias pantufas inventadas ninguém sabe ao certo por quem nem quando e onde. Este, Oeste, século XII. Regalia certamente de poucos cobiçada talvez por alguns e desconhecida de muitos, a pantufa mais antiga do que o astrolábio, existe há tanto tempo como a bússola e há quase tanto tempo como a ambulância. A pantufa não consta entre os objetos que se levariam hipoteticamente para uma ilha deserta. A pantufa não salva nem alimenta. Aquece. E como qualquer objeto III foi adquirindo ao longo do tempo novas funções e feitios. No século XXI a pantufa é usada nos desertos dos Estados Unidos: El Paso, Arizona ou San Diego. Feita à medida de todos os sapatos indocumentados a pantufa, vendida por mexicanos a mexicanos, cobre as pegadas dos que, numa mão, carregam os filhos e na outra a garrafa de água. A garrafa de água, forrada com fita-cola, afasta o sol; evita também o reflexo do sol no plástico e o disparo de uma AR-15. Não parecem ridículos os indocumentados ao longo da fronteira. A pantufa, maciça e multiplicada prediz o número de corpos desaparecidos. As famílias dos mortos jamais recebem de volta as pantufas. Há por isso quem, além das garrafas forradas colecione pantufas perto de onde os indocumentados e as indocumentadas tombam. O debate entre os artistas estadunidenses que trabalham com pantufas e garrafas é essencialmente estético e inútil: limpar ou não a pantufa antes de colocá-la no museu? Mas não há nenhuma estética na pantufa, maciça e multiplicada ao longo da fronteira nos pés dos indocumentados. Não há estética onde não há Deus. [POEMA PUBLICADO NA CAPIVARA CULTURAL. BRASIL. 2020.] PEQUENA TRAPAÇA ENGENHOSA
Obedeço aos impostos anuais e às instituições onde ensino poesia, desaprendendo a pátria, o belo, o cânone e a praxe. Sou uma mulher leal, ordinária e tenho alguma dificuldade em posicionar-me verticalmente no hábito e na prática. Obedeço à respiração, ao sol e cada vez mais ao cansaço dos dias úteis, reconhecendo a luz e a beleza espontânea que há em inspirar e expirar, tremendo, uma e outra vez até à morte, ao sonho e à memória. Sou um rapaz terno que obedece às regras de segurança e tédio dos aeroportos à gravidade, à visão, à escuta. Deposito no verso o sopro do que vejo e escuto, e escrevo de cabeça erguida, ouvido voltado para a reverberação do grande mundo reprimido. Obedeço ao poema, que é o silêncio em fala, a curvatura do meu corpo até ao chão, noventa graus um pouco tortos e interessam-me os tortos, o mundo coxo. Vou de orelha encostada às nossas mães e avós, de olho e retina aguçados sobrevoando a história total. Interessam-me o estudo aéreo e o rigor panorâmico das aves. Sou uma galinha, descendo do antigo quetzalcoatlus e ataco, visceral e gorda, o antigo e masculino consórcio dos deuses. O poema é um tijolo alado. Obedeço sobretudo ao amor, aos semáforos e aos sinais de rua. Um assegura os outros, os outros asseguram o amor. A carne interessa-me também, como me interessam os sismos, a dor as mãos e as correntes de água. Trepo o diospireiro da casa com o único propósito de comer. Caio, ascendo e incendeio o jardim. Sou uma menina muito delicada e é com delicadeza que projeto o poema monstruoso, como um ralo no Pacífico e logo adormeço. Nasci para exercer o feminino e o atómico. |
[QUATRO CINCO UM. FOLHA DE S. PAULO. BRASIL. 2022.]
PAELLA Cortando os tomates do almoço solarengo de domingo que a mãe lhe ensinou a cozinhar sob a asa e os risos de San Juan, para onde a dona Guadalupe se mudou depois de o marido morrer há cinco compridos anos e onde frequentou, às sextas, um curso grátis de escrita poética, não a outra, porque sempre lhe interessaram mais do que os romancistas, os poetas, que lançam como ela dizia, palavras para a sombra e ficam à espera não se sabe exatamente de quê, de quem, não houvesse valor na escuridão, e onde aprendeu sobre translações totalidade, a beleza do inútil miúdo, que a poesia diz o que ela diz dizendo e que ela é, sem prerrogativas o contrário do que todas as pessoas acham que ela é como um bastão invisível pronto a acertar nos ausentes e operacionais, Mariana bagunça depressa os cabelos e pergunta: — Achas que vale a pena escrever um livro de poemas? Sacudidos os dedos, Maíra começa por cortar o pimentão vermelho, e pensa sem demoras no último livro que leu de Rosario Castellanos, recomendado, há alguns meses por uma amiga de infância, e como gostou também e muito, de Juana de Ibarbourou, como não se esqueceu por vê-la tantas vezes em todos os lugares, da sua rosa vertical e branca, furando discretamente o movimento da própria continuidade, materializando, desse modo a palavra, tão robusta como um martelo especulativo tão reluzente e encarnada como esta verdura, curioso aliás, como tudo continua existindo apesar do mundo grosseiro e implacável, da superfície, e o canto grande o que é exatamente o canto grande senão a insistência em reinventar a vida, os pés sobre a terra, e a terra sobre ambas as mãos, até que se endireita, suspira e responde: — Acho que não. Já há muitos. [LÍNGUA LUGAR. SUÍÇA. 2021.]
MANUAL PARA DECAPITAR HERÓIS Achega-te, inala e corta, tal a machadada no que suporta o busto, que quando a cabeça caia te sobre ainda tempo para o entulho. Começa por baixo, no sentido que mais te aprouver e não te assustes, porque há na cesura o encontro com as partes. O que desaba não é a tradição mas o fabrico do passado. Cerceia a eito o monstro pela raiz e, caso eles te cuspam adianta, arreganhando os dentes, a mordidela. Se te faltar força, descansa o braço, repousa o olho com que escutas o princípio. E de volta ao dispor ambos os pés sobre as arestas do pedestal tem cautela. Não é a tradição que desaba, ou a lisura mas é muito o que descamba. Há quantas palavras afinal, firmaram eles as pautas e a praxe? Agora que deste a espalda à peleja e o coração à demanda, percebes como o golpe prediz a borda vária e desconhecida, da máquina, que à máquina sucederão a boca e as línguas, o gesto e os corpos em meia-luz. Ao desígnio da invenção seguirá por seu turno, a vida. E, como um susto, a vida não se prevê. Cabeleiras, grinaldas e dorsos rolarão porque à história agradam as piruetas, para o museu das coisas amorfas. Augúrios de lado, o canto faz-se de ouvido pregado à terra. Verga-te, por isso, até à oscilação vaga e firme do achado. Aprende tão perto da morte, a toada circular do recomeço e escuta como, ao tombo estirado dos gigantes de pedra despontam plantas e grilos num reino de calhaus. Se falassem, em que tempo do tempo lhes falarias? [SUDOESTE. ESPANHA. 2021.]
POÉTICA ZAROLHA Dedico-me ao verbo e à navalha com que não aparo os pêlos filosóficos (apesar de saber como os usavam cínicos, estoicos e peripatéticos) e com que relutante disseco a tradição o cascalho, a anatomia canónica. Repouso a faca sobre as duas pernas e falta-me a paciência, a saúde sintática. O poema é o poema será ora esta vontade de duas coisas ora a reserva com que me encolho e recolho. A mudez voluntária do indicador alado, que dá voltas projetando a forma: aperfeiçoar o que se torce e contorce, o dorso truncado, teso, ante a sentença crítica, as listas, a santíssima trindade. Contornar o aborrecido estado das coisas, benzer o feio. Eva Maria, cheia de graça, mãe Irmã, avó, abençoai-nos. Amen. Parar aqui ou adiante, entoando o canto empenhado, engasgado suado. Preocupa-me sobretudo a palavra zarolha, anamórfica. [PATTI SMITH 75. CORSÁRIO-SATÃ. BRASIL. 2021.]
PATTI, REDONDO BEACH DESERVES A POEM foi o que disseste com o dedo apontado à curiosidade do meu nariz. A certeza do canto, prescrita acima das ondas, diz muito sobre o ofício. Há que ficar calada diante do mar e não há como ficar calada diante do mar. Há que cortar a mão, tamanha a irrelevância do roubo, e não há como cortá-la. Que o ofício é mais e menos do que as águas certamente mais e menos do que os nossos pés soterrados no areal e, como o amor, nos convida a trilhar antes de abater-nos como macucos, o aroma dos deuses. Só nós ouvimos o canto, só nós sabemos cantar com ruído e pirraça, o que mais importa. O nada ou a dificuldade em fitá-lo. E Redondo Beach. Os deuses não costumam visitar Redondo Beach. Não comerão elotes nem huaraches no Domínguez Park. Não conhecerão LeeAnn nem as suas bitocas aéreas. Fartos e grandes, decerto estarão agora sentados no tempo suspenso desta narrativa, rindo de mim colgada pelo faro à pontaria do teu indicador travesso Esgrimista profusa em estocadas, bela pirata de South Bay qual bruxa hemisférica, tal a zanga da cobra acirrada de boca tão aguçada quanto um piquete Will you write it, or not? [DO VOLUME DYLAN 80. CORSÁRIO-SATÃ. BRASIL. 2021.] AXÉ, MUNDO Foi com as mãos curtas e besuntadas que agarrámos a juventude. Ariscos propensos ao tombo, lambíamos com pressa e língua, o amor e os quadris. O que julgávamos ser o amor, pisava: bota imunda, grosseira, tão enorme surra. Não sabíamos, não era tempo que o corpo endura e sói reinventar-se esplêndido, como um animal liberto. Tampouco imaginávamos que, então moído, o coração se dilataria como uma praia. E depois vieram o golpe, um bramido de sereia, aliciante, brutal, e a febre. De nada nos valeram as tisanas, sequer o intelecto a poucos, esparsos metros da desgraça. A carne chupava-se toda sem soluçar, até ao tutano. Muito rápido viramos carcaça, um traste sem forma e bracejando, numa briga cortante e acesa com a ruindade, perdemos a mão e a vara. Quanto pavor da apressada bagunça, da burla, do irreparável fracasso apontado à garganta. Foi quando cedemos. A queda pela manhã. Não sabíamos, não tínhamos como saber que o amor, rasteiro e simples, aplacava a fome, que mais tarde o aprenderíamos como aprendemos o verbo. E a obstinada triste perna, estremecendo ao tropeçar não deixou de conduzir este braço que surgido da tal escuridão, quis acenar cinicamente ao mundo. Axé, mundo quantas manhas mais me trarás ainda? E o mundo soprou até à casa de onde sorríamos. Foi quando cantámos. A gentil melodia a abrir-se toda como ondas às palavras colhendo umas, rechaçando outras, a vida estirando-se ao sol, comprida, e o corpo ao redor dela, a pô-la no regaço. Afinal a alegria, que chega inteira, não esmaga. O canto, essa violência afetuosa, crescerá e eu crescerei, dançando só, ao tactear às escuras a vida no verso designado e ardente. Noto como caibo e entro, enfim no fazer e na solidão. E é então que compreendo. [LOTE. PORTUGAL. 2021.] EM TORNO DO PLANO FOCAL __________________________Para escribir estas líneas debo cerrar los ojos, __________________________y echar los hombros hacía atrás. ________________________________________________________Cecilia Pavón I Depois do gesto solto o galo canta na ágora ágil mesmo nu Miguel cruza as pernas sobrepondo o joelho do meio-dia a uma das patas O aceno à licença Ter mãos para isto e para ele na tarde aberta em palmeiras sinópticas onde o escrutino, terno e simples de cabelos anelados e cinéreos até que pelado Miguel se levanta subindo para um dos mindinhos do deus e num crescendo de sol me olha de volta Depressa me reconhece pois que língua poderia ter cantado o galo, senão esta minha? Foi há séculos atrás que me mirou Querida poeta (e tudo) com os olhos dispostos ao longo do beiral, de tudo e nada sabendo, como um tronco ao alto na aldeia pagã Um novo punho escrevente para a reinvenção do alfabeto II Miguel toca com a testa radiante a espalda do verbo intransitivo e medindo a costura para o corpo oferece o início -- Depois, a linguagem Daninha, sinuosa, tão incorrupta como o sobressalto, ela é o fim e o começo do espanto. Depondo a fala nas coisas, modela, severa como um clarão, todos os nomes Mais tarde, a escrita A descrebilização do gesto é (também) o fim do corpo nu Êh selvagem êh e por isso Miguel se descobre insinuando a vida, o batimento primitivo do coração, ao som dos cães que tagarelam sacudindo as caudas, o propósito, as regras E então o poema O ato de furtar e o próprio furto A plena recusa de tudo, e o nada depositando o caos sobre o eixo oratório. Revérberos, a mancha e a dicção verbais. Tão e afinal um soco bruto, investida pontuda que golpeia o longe desmedido e ao longe faz o morto e a verdade O poema ainda Miguel é um pugilista das coisas invisíveis, e é quando se volteia tímido, para ver-me que lhe dou a mão anfíbia — sabe que vem Somos duas sombras de esplendor Em frente, a ribanceira [DOIS TEXTOS PUBLICADOS NA REVISTA TXON. CABO-VERDE. 2020.] A MÍMICA DAS ONÇAS
Os ameríndios não se moviam como os europeus, porque tinham o poder de ser onças. Onçar. Isto incomodava muito os europeus, que caminhavam de um modo sério e estreito. Mas o que incomodava mais os colonos era o silêncio dos ameríndios, que, por terem superpoderes, dispensavam as palavras e sobretudo a escrita. Imitavam, além disso, o modo como os europeus se moviam, porque a artificialidade do movimento, tão distante da destreza animal, lhes parecia muito engraçada. Não havia como responder à mímica das onças, porque a um exercício mímico deve responder-se sempre, como numa breakdance battle, com outro exercício mímico. E os europeus só conheciam as palavras. O exercício mímico vence, de resto, o exercício oratório. Foi por esta razão que o gesto concreto de Diógenes, que soltou um galo na ágora, ultrapassou a ideia comparativa de Platão. Foi também por esta razão que a arte da performance nasceu nas Américas. E é também por esta razão que o humor é uma forma de violência. A MÃO DEFORMADA A mão deformada escreve o poema A mão deformada apaga o poema A mão deformada reescreve o poema A mão deformada guarda, discreta e por tempo indefinido, o poema. A mão deformada descreve o poema A mão deformada edita o poema A mão deformada publica o poema A mão deformada vende o poema A mão deformada compra o poema A mão deformada interpreta o poema aventurando-se, de bic azul em punho nos lares semióticos, sintáticos, táticos agramáticos, bióticos, visuais e exóticos da palavra infernal. “Ali está, e grunhe horrivelmente”. A mão não se detém. A mão deformada aperta o poema A mão deformada sublinha o poema A mão deformada analisa o poema A mão deformada inspeciona o poema abafa-o, sobrevaloriza-o, vira sobre ele café ou vinho, uma mancha eclética. A mão deformada categoriza o poema A mão deformada define o poema A mão deformada parodia o poema escrevendo outro poema, rasga-o come-o, faz dele um aviãozinho e se tiver mais arte, um barquito, pato cisne ou workshop gratuito de origami. A mão deformada complica o poema A mão deformada teoriza o poema A mão deformada compara o poema a um filme tardio de Federico Fellini ou a uma maçã fuji em decomposição. A mão deformada disseca o poema A mão deformada transcreve o poema A mão deformada parafraseia o poema A mão deformada desemprega o poema e a poeta, que são no fundo muito úteis pois o que ocuparia a mão deformada senão o poema, a poeta e a inutilidade dos três? O machado afiado do talhante ou a agulha de mão do senhor alfaiate? A mão deformada costura o poema A mão deformada defende que o poema é feminista, machista, queer, colonial trans, homofóbico, fascista e (suponho que também) ecológico, ilógico, racial e (suponho que tudo, menos) classista. A mão deformada mastiga o poema A mão deformada rasura o poema A mão deformada incendeia o poema A mão deformada reescreve o poema recomeçando assim o círculo milenar de todas as mãos deformadas, até que num dia solarengo como outro qualquer a mão deformada, que é como qualquer outra mão, morre. E depois de cremada e depositada nas águas pelos discípulos vem substitui-la, com a mesma certeza penetrante e magra, outra mão deformada. |