PATRICIA LINO
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[QUATRO CINCO UM. FOLHA DE S. PAULO. BRASIL. 2022.]

PAELLA


Cortando os tomates do almoço solarengo de domingo
que a mãe lhe ensinou a cozinhar sob a asa e os risos 
de San Juan, para onde a dona Guadalupe se mudou 
depois de o marido morrer há cinco compridos anos
e onde frequentou, às sextas, um curso grátis de escrita 
poética, não a outra, porque sempre lhe interessaram
mais do que os romancistas, os poetas, que lançam
como ela dizia, palavras para a sombra e ficam à espera
não se sabe exatamente de quê, de quem, não houvesse 
valor na escuridão, e onde aprendeu sobre translações
totalidade, a beleza do inútil miúdo, que a poesia diz 
o que ela diz dizendo e que ela é, sem prerrogativas
o contrário do que todas as pessoas acham que ela é 
como um bastão invisível pronto a acertar nos ausentes
e operacionais, Mariana bagunça depressa os cabelos 
e pergunta:

— Achas que vale a pena escrever um livro de poemas?
​
Sacudidos os dedos, Maíra começa por cortar o pimentão
vermelho, e pensa sem demoras no último livro que leu
de Rosario Castellanos, recomendado, há alguns meses
por uma amiga de infância, e como gostou também 
e muito, de Juana de Ibarbourou, como não se esqueceu
por vê-la tantas vezes em todos os lugares, da sua rosa
vertical e branca, furando discretamente o movimento 
da própria continuidade, materializando, desse modo
a palavra, tão robusta como um martelo especulativo
tão reluzente e encarnada como esta verdura, curioso
aliás, como tudo continua existindo apesar do mundo
grosseiro e implacável, da superfície, e o canto grande
o que é exatamente o canto grande senão a insistência
em reinventar a vida, os pés sobre a terra, e a terra 
sobre ambas as mãos, até que se endireita, suspira
e responde:

— Acho que não. Já há muitos.
​
[RUÍDO MANIFESTO. BRASIL. 2021.]

O GRANDE PROBLEMA DA POESIA


Você certamente sabe por que Hefesto coxeava
leu os lindos e airosos dóricos de Bión de Esmirna
memorizou quantos graus fez a cabeça de Dido
ao mover-se tristonha por entre os espectros, leu
como não, os 34 cantos do Inferno, discutiu uma
e outra vez, o propósito da gargalhada pública
da doutrina cervantina, não passou um ano, um
sem que reabrisse os idílios, recalcando, obstinado
a importância dos clássicos, o que têm de clássico
os clássicos, os gigantes e os génios, os semideuses
e os prémios. Você certamente dedilhou na página
o ritmo seco e galopante do verso futurista, gozando
açulado, tal o bofetão na escuta, a métrica delirante.
Urrrrà! Non più contatti con questa terra immonda!
Declamou expressivamente antigos e modernos, alto
para que escutassem a justeza da sua interpretação
sorvida, como é hábito, na mais estudada análise
escolar do país. E leu, claro, o país, berço de prodígios
tão extraordinários, todos estes campos cheios
de uma História imperial, esplendorosa e soberana.

​Esqueceu-se, porém, de questionar o conforto do nome
de entortar-se, corpo anguloso, para entrar distintamente
e de olhos abertos, no mundo todo. Sequer legitimou
as doidas orgias do Palácio de Ítaca, o não tão digno
mito do arado, ou a criatividade da disputa holográfica
de Estesícoro. Tampouco quis saber o que sussurraram
as mulheres, pilares intemporais do engenho, no silêncio
ou contradisse o tempo linear, os bastidores do mérito
a branquitude da escrita, quanto mais a própria escrita
a forma e a vida, tão redonda como variada, tão farta
como um tomate arremessado à órbita dos caretas.
Você certamente não estudou a história dos trejeitos
a ciência do desconhecimento, o difícil canto gestual
que se lê no espaço e na escuridão, com a inteligência
assombrosa e demorada, de quem perde e tropeça.
E este é essencialmente o grande problema da poesia
regrada, enfeite da nação e da narrativa, da raça
simulada e da comitiva, cómoda no ofício, competente
na beleza fácil, alheia à esfera natural, ao corisco
e à cambada milenar que o assopra até ao fogo desmedido.


[DO VOLUME DYLAN 80. CORSÁRIO-SATÃ. BRASIL. 2021.]​

DEAREST MR. JONES

 
Passavas os dedos pelo epílio do Banho de Pallas
quando o teu cão morreu.
 
Incrédulo, achaste graça na coincidência.
Canhim morde, canhim morre. Actéon vai
ou vive. Quem decide? A vida, tão real
como a literatura, dois grãozinhos cúbicos
no café, e a calma. Tu, que curioso leste
também, os modernos sabes como importa
a apreciação miúda e ínfima das coisas. E
apesar de nunca o teres entendido, repete-lo
aos amigos, como se te tivesse sido dado
pela coalizão secreta dos leitores de poesia
o talento invulgar de viver bem.
 
Preparas-te para dormir, um dos polegares
sobre os olhos. Como te cansaste. O cão
não volta, mas o tempo tampouco cessa.
Sonharás com Micenas, H. Schliemann
aquela ópera de que gostas tanto, lindo
e inquietante tornado de referências. Ah
e as tragédias, o destino, os dias comuns
ficarão marcados pela minúcia com que
dúctil, manuseias os clássicos. Acima
das sobrancelhas, com os braços abertos
ou sob a pontinha do nariz soberbo.
 
É quando ouves o grande ruído lá fora.
Apressas-te até à janela intrigado pelo som
crescente. São gritos, libélulas e tambores.
Uma estátua que tomba alçada pelo futuro.
Não o entendes. Nunca entenderás o furor
e o tesão do canto, por que meio mundo
enraivecido, algo rancoroso, tão insolente
se presta a tais disputas. Afinal, a beleza
reparte-se pelos muitos livros no silêncio
da tua casa. Que grunhidos podem, enfim
haver maiores que a tradição? Adormeces.

[DA ANTOLOGIA POETAS CONTEMPORÂNEAS DO BRASIL. BRASIL. 2021.]

USINA NUCLEAR

 
Sobrevivi às tias, ao mar e ao cânone
à cantada gutural e seca dos macacos
ao disparo do canhão e às mazelas
dos gatos. E franzindo a sobrancelha
sobrevivi também ao fervor copulativo.
Comprei cactos, vassouras, panelas.
Sou um erro do sistema, “uma usina
nuclear”, disse ele gracejando. Afinal
sobrevivi à nação do eterno ontem e
em silêncio, corroborei o receio
dos inimigos: um grito sem volta.
Como sobrevivi, não importa:
talvez em silêncio, talvez cantando.
Aborrecida, não pude senão, furiosa
agarrar-me ao tempo, trepar as costas
largas dos deuses. Sobrevivi também
ao pater familias e ao braço, inquieto
colossal e farto da escrita. Aqui estou
entre a tradição e a voz, escrevendo
contra um país burro. Impossível
na verdade, roçar a língua na palavra
lúcida, e responder: como sobrevivi
a este braço potente que é a extensão
de um corpo teso, quadrúpede dizendo
e insistindo, mais do que tudo crendo
na bizarrice do poema primo e cintilante?
​
[DA ANTOLOGIA DE POEMAS NÃO É ISTO UM LIVRO. COLÔMBIA. 2020.]
CALHANDRAS

O canto das calhandras é infinito.
O canto de várias calhandras é ensurdecedor.
Antes de ser ave, a calhandra era um cesto onde as mulheres depositavam os excrementos que, mais tarde, despejavam no Tejo.
Quando se agrupavam junto ao rio para despejar os excrementos, as calhandreiras, que não falavam nunca, falavam, por fim, umas com as outras.
O som da calhandrice chegava até Telheiras.
O verbo calhandrar não existe, mas podia, e antecipa a eternidade do canto das aves.
​
​
Picture

​​

​​CALEIDOSCÓPIO


A suspensão coloidal das nuvens no trânsito.
O número de habitantes de Singapura
(新加坡共和国, 5 000 000, [114.º]).
Estar de joelhos onde acabem as tuas costas.
A cor azul dos teus atacadores no tapete
da entrada. Uma péssima tradução de Aristóteles.
Andar para trás na Pan-American Highway.

Como não há semelhanças entre um vinil dos Smiths
e um moinho de vento? São ambos processos
de fragmentação: please please please
let me get what I want


Os solavancos homéricos do autocarro nas manhãs
onde não beijo ninguém. O crânio dançante das galinhas.
Saber que o jazz se ouve de barriga para o ar.
O rapaz que me disse aos 6 que eu era uma varanda
ensinou-me o que era uma metáfora. A + B = C.
Saber quantos fonemas tem a língua portuguesa.
Expulsar o gato. Ficar a sós com Schrödinger
na caixa. "Só plantará um jardim de cabeça para baixo
quem não ler a Historia Plantarum". Naná quem disse.
Uma ferida é a interrupção da continuidade do tecido
corpóreo. "Nonsense Botany" foi o que escrevi
num bilhetinho para Naná. Naná não respondeu. São 31.

Se Sócrates sorriu para a morte de dedo em riste,
por que não haveria eu de sorrir-te na fila do metro?
A primeira nódoa na camisa foi a tua boca.
​A indecisão do pássaro em afogar-se no charco ou
o primeiro salto dos jogos olímpicos. Pintar um quadro
numa praia de nudistas. O movimento centrífugo
que os mamíferos desenham antes de deitar-se.
Aprender que o amor não é um rondó: três couplets,
quatro ritornellos, um coração só, A-B-A-C-A-D-A
mão no seu lugar: aos ombros te carrego pelos lábios.
A tosse pneumática a 15 de novembro. As unhas raspadas.
O suicídio do hamster Tobias a 5 de janeiro. Cf. Werther.
A minha festa de aniversário de 1999. A tua saia. Tu.
O último massacre do Sudeste Asiático, quão caro está
o tabaco, o preço da papaia, uma nação nas meias.
Ser perpendicular à porta de tua casa. A vermelha,
que rodopiava. O lavatório, o queixo. Dois olhos
no espelho: girl, girl that I see,/ is there a literary-est
mirror than me?
​
UM QUADRO BRANCO SOBRE UM FUNDO BRANCO
 
Quando Malevich pintava
os pássaros eram destinados a rectângulos
e as mãos das raparigas a linhas horizontais
vermelhas azuis verdes ou amarelas
que eram as cores com que Malevich não pintava
pássaros ou mãos de raparigas
mas a subtração entre os dois.
 
Notável a destreza com que Malevich suspendia
o dedo indicador sobre a mesa para dizer
Não é mais preciso pintar aquilo que se vê
Mas ninguém entendia Malevich
e Malevich aborrecia-se.
 
Aspirando à prática das suas considerações
Malevich tinha os dois pés sobre um banco
quando numa das tardes de 1915 terminou
um quadrado preto sobre um fundo branco.
Fumava uma cigarrilha e hesitava:
Mostrá-lo aos amigos, aos alunos?
Expô-lo numa galeria, colocá-lo no museu?
Um quadrado preto sobre um fundo branco.
Que mais podes querer, Kazimir Malevich?
Um quadrado preto sobre um fundo branco.

Mas Kazimir Malevich queria mais:
um quadro branco sobre um fundo branco.
Eriçaram-se em 1918 os cabelos de Malevich
perante aquela forma que não era outra coisa
senão a eliminação de todas as formas.
Malevich pensou: nunca mais pinto um quadro.
Aleksandra Ekster pensou: Malevich nunca mais
pinta um quadro. Mas Malevich pintou.
Muitos esqueceram até o que Malevich disse
com o dedo em riste num atelier em Verbovka
Resta-lhes apenas a imagem do seu indicador volátil.
 
Alguns juram ainda tê-lo ouvido murmurar em 1935
como se alinhasse a testa com a morte:
Então a tua lição, Kazimir Malevich, nunca esteve
na eliminação de todas as formas
mas na impossibilidade de eliminá-las.
 
Por isso um quadro branco sobre um fundo branco
serve unicamente para:  
 
1) redestinar os rectângulos a pássaros
2) abrir as paredes e destrinçar todas as cores
3) entender que o grito antecipa a boca
4) desenhar bocas para o grito
5) isto é, desbocar
​A PANTUFA


I
 
As nossas enormes pantufas tinham orelhas, bocas e dentes
para que desbravássemos o chão, a casa e os pais
e suportássemos com um leão nos dedos o frio português
 
As pantufas vendem-se no supermercado, são para crianças
(porque os adultos, alguém disse, parecem ridículos com elas)
e o seu preço sobe ou desce a partir do quão exótico o animal é.
 
Mas nem todas as pantufas têm a forma de um animal, exótico ou não,
e nem todas as crianças têm pantufas, com a forma de um animal ou não.
Nós tivemos um par cada um, cuidámo-lo, crescemos e esquecemo-lo
 
como esquecemos o conforto do nosso país, da casa e dos pais
por agora desbravarmos outras terras e outros idiomas, estrangeiros,
tu e eu sem um leão nos dedos, com algum azar, solidão e brio.
 

II

 
Pantufa vem do francês pantoufle; em inglês diz-se slipper
(do verbo to slip, e lembra slippering, que é um castigo
a chicotadas, reguadas ou chineladas. Atroz, absoluto).
 
Pantufla, do espanhol, tem entre as fonéticas a mais cheia
e confortável: como devem ser de resto as próprias pantufas
inventadas ninguém sabe ao certo por quem nem quando
 
e onde. Este, Oeste, século XII. Regalia certamente de poucos
cobiçada talvez por alguns e desconhecida de muitos, a pantufa
mais antiga do que o astrolábio, existe há tanto tempo como a bússola
 
e há quase tanto tempo como a ambulância. A pantufa não consta
entre os objetos que se levariam hipoteticamente para uma ilha deserta.
A pantufa não salva nem alimenta. Aquece. E como qualquer objeto

​III
 
foi adquirindo ao longo do tempo novas funções e feitios. No século XXI
a pantufa é usada nos desertos dos Estados Unidos: El Paso, Arizona
ou San Diego. Feita à medida de todos os sapatos indocumentados
 
a pantufa, vendida por mexicanos a mexicanos, cobre as pegadas
dos que, numa mão, carregam os filhos e na outra a garrafa de água.
A garrafa de água, forrada com fita-cola, afasta o sol; evita também o reflexo
 
do sol no plástico e o disparo de uma AR-15. Não parecem ridículos
os indocumentados ao longo da fronteira. A pantufa, maciça e multiplicada
prediz o número de corpos desaparecidos. As famílias dos mortos jamais
 
recebem de volta as pantufas. Há por isso quem, além das garrafas forradas
colecione pantufas perto de onde os indocumentados e as indocumentadas tombam.
O debate entre os artistas estadunidenses que trabalham com pantufas e garrafas
 
é essencialmente estético e inútil: limpar ou não a pantufa antes de colocá-la
no museu? Mas não há nenhuma estética na pantufa, maciça e multiplicada
ao longo da fronteira nos pés dos indocumentados. Não há estética onde não há Deus.
[LÍNGUA LUGAR. SUÍÇA. 2021.]

MANUAL PARA DECAPITAR HERÓIS

 
Achega-te, inala e corta, tal a machadada
no que suporta o busto, que quando a cabeça caia
te sobre ainda tempo para o entulho. Começa
 
por baixo, no sentido que mais te aprouver
e não te assustes, porque há na cesura o encontro
com as partes. O que desaba não é a tradição
mas o fabrico do passado. Cerceia a eito
o monstro pela raiz e, caso eles te cuspam
adianta, arreganhando os dentes, a mordidela.
 
Se te faltar força, descansa o braço, repousa
o olho com que escutas o princípio. E de volta
ao dispor ambos os pés sobre as arestas do pedestal
tem cautela. Não é a tradição que desaba, ou a lisura
mas é muito o que descamba. Há quantas palavras
afinal, firmaram eles as pautas e a praxe?
 
Agora que deste a espalda à peleja e o coração
à demanda, percebes como o golpe prediz a borda
vária e desconhecida, da máquina, que à máquina
sucederão a boca e as línguas, o gesto e os corpos
em meia-luz. Ao desígnio da invenção seguirá
por seu turno, a vida. E, como um susto, a vida
 
não se prevê. Cabeleiras, grinaldas e dorsos rolarão  
porque à história agradam as piruetas, para o museu
das coisas amorfas. Augúrios de lado, o canto faz-se
de ouvido pregado à terra. Verga-te, por isso, até
à oscilação vaga e firme do achado. Aprende
tão perto da morte, a toada circular do recomeço
 
e escuta como, ao tombo estirado dos gigantes de pedra
despontam plantas e grilos num reino de calhaus.
Se falassem, em que tempo do tempo lhes falarias?

[SUDOESTE. ESPANHA. 2021.]

POÉTICA ZAROLHA


Dedico-me ao verbo e à navalha
com que não aparo os pêlos filosóficos
(apesar de saber como os usavam
cínicos, estoicos e peripatéticos)
e com que relutante disseco a tradição
o cascalho, a anatomia canónica.
Repouso a faca sobre as duas pernas
e falta-me a paciência, a saúde
sintática. O poema é o poema será
ora esta vontade de duas coisas
ora a reserva com que me encolho
e recolho. A mudez voluntária
do indicador alado, que dá voltas
projetando a forma: aperfeiçoar
o que se torce e contorce, o dorso
truncado, teso, ante a sentença
crítica, as listas, a santíssima
trindade. Contornar o aborrecido
estado das coisas, benzer o feio.
Eva Maria, cheia de graça, mãe
Irmã, avó, abençoai-nos. Amen.
Parar aqui ou adiante, entoando
o canto empenhado, engasgado
suado. Preocupa-me sobretudo
a palavra zarolha, anamórfica.

[PATTI SMITH 75. CORSÁRIO-SATÃ. BRASIL. 2021.]

PATTI, REDONDO BEACH DESERVES A POEM

 
foi o que disseste com o dedo apontado à curiosidade do meu nariz.
 
A certeza do canto, prescrita acima das ondas, diz muito sobre o ofício.
Há que ficar calada diante do mar e não há como ficar calada diante do mar.
Há que cortar
a mão, tamanha a irrelevância do roubo, e não há como cortá-la.
 
Que o ofício é mais e menos do que as águas
certamente mais e menos do que os nossos pés soterrados
no areal e, como o amor, nos convida a trilhar
antes de abater-nos como macucos, o aroma dos deuses.
 
Só nós ouvimos o canto, só nós sabemos cantar 
com ruído e pirraça, o que mais importa. O nada
ou a dificuldade em fitá-lo.
E Redondo Beach.
 
Os deuses não costumam visitar Redondo Beach. 
Não comerão elotes nem huaraches no Domínguez Park.
Não conhecerão LeeAnn nem as suas bitocas aéreas.
Fartos e grandes, decerto estarão agora sentados
no tempo suspenso desta narrativa, rindo de mim
colgada pelo faro à pontaria do teu indicador travesso
 
Esgrimista profusa em estocadas, bela pirata de South Bay
qual bruxa hemisférica, tal a zanga da cobra acirrada
de boca tão aguçada quanto um piquete
 
Will you write it, or not?

​

[DO VOLUME DYLAN 80. CORSÁRIO-SATÃ. BRASIL. 2021.]

AXÉ, MUNDO

 
Foi com as mãos curtas e besuntadas
que agarrámos a juventude. Ariscos
propensos ao tombo, lambíamos
com pressa e língua, o amor e os quadris.
O que julgávamos ser o amor, pisava:
bota imunda, grosseira, tão enorme
surra. Não sabíamos, não era tempo
que o corpo endura e sói reinventar-se
esplêndido, como um animal liberto.
Tampouco imaginávamos que, então
moído, o coração se dilataria como uma praia.
 
E depois vieram o golpe, um bramido
de sereia, aliciante, brutal, e a febre.
De nada nos valeram as tisanas, sequer
o intelecto a poucos, esparsos metros
da desgraça. A carne chupava-se toda
sem soluçar, até ao tutano. Muito rápido
viramos carcaça, um traste sem forma e
bracejando, numa briga cortante e acesa
com a ruindade, perdemos a mão e a vara.
Quanto pavor da apressada bagunça, da
burla, do irreparável fracasso apontado à garganta.
 
Foi quando cedemos. A queda pela manhã.
Não sabíamos, não tínhamos como saber
que o amor, rasteiro e simples, aplacava
a fome, que mais tarde o aprenderíamos
como aprendemos o verbo. E a obstinada
triste perna, estremecendo ao tropeçar
não deixou de conduzir este braço que
surgido da tal escuridão, quis acenar
cinicamente ao mundo. Axé, mundo
quantas manhas mais me trarás ainda?
E o mundo soprou até à casa de onde sorríamos.
 
Foi quando cantámos. A gentil melodia
a abrir-se toda como ondas às palavras
colhendo umas, rechaçando outras, a vida
estirando-se ao sol, comprida, e o corpo
ao redor dela, a pô-la no regaço. Afinal
a alegria, que chega inteira, não esmaga.
O canto, essa violência afetuosa, crescerá
e eu crescerei, dançando só, ao tactear
às escuras a vida no verso designado
e ardente. Noto como caibo e entro, enfim
no fazer e na solidão. E é então que compreendo.
​



[LOTE. PORTUGAL. 2021.]​

EM TORNO DO PLANO FOCAL

 
__________________________Para escribir estas líneas debo cerrar los ojos,
__________________________y echar los hombros hacía atrás.
 
________________________________________________________Cecilia Pavón
 
I
 
Depois do gesto
solto o galo canta na ágora
ágil mesmo nu
 
Miguel cruza as pernas
sobrepondo o joelho do meio-dia
a uma das patas
 
O aceno à licença
 
Ter mãos para isto e para ele
na tarde aberta em palmeiras sinópticas
onde o escrutino, terno e simples
de cabelos anelados e cinéreos
 
até que pelado Miguel se levanta
subindo para um dos mindinhos do deus
e num crescendo de sol
me olha de volta
 
Depressa me reconhece
pois que língua poderia ter cantado
o galo, senão esta minha?
 
Foi há séculos atrás que me mirou
Querida poeta (e tudo)
com os olhos dispostos
ao longo do beiral, de tudo e nada
sabendo, como um tronco ao alto
na aldeia pagã
 
Um novo punho escrevente
para a reinvenção do alfabeto

II
 
Miguel toca com a testa radiante
a espalda do verbo intransitivo
e medindo a costura para o corpo
oferece o início --
 
Depois, a linguagem
 
Daninha, sinuosa, tão incorrupta
como o sobressalto, ela é o fim
e o começo do espanto. Depondo
a fala nas coisas, modela, severa
como um clarão, todos os nomes
 
Mais tarde, a escrita
 
A descrebilização do gesto é
(também) o fim do corpo nu
          Êh selvagem êh
e por isso Miguel se descobre
insinuando a vida, o batimento
primitivo do coração, ao som
dos cães que tagarelam sacudindo
as caudas, o propósito, as regras
 
E então o poema
 
O ato de furtar e o próprio furto
A plena recusa de tudo, e o nada
depositando o caos sobre o eixo
oratório. Revérberos, a mancha
e a dicção verbais. Tão e afinal
um soco bruto, investida pontuda
que golpeia o longe desmedido
e ao longe faz o morto e a verdade
 
O poema ainda
 
Miguel é um pugilista das coisas
invisíveis, e é quando se volteia
tímido, para ver-me que lhe dou
a mão anfíbia ­— sabe que vem
Somos duas sombras de esplendor
 
Em frente, a ribanceira



​[DOIS TEXTOS PUBLICADOS NA REVISTA TXON. CABO-VERDE. 2020.]
​A MÍMICA DAS ONÇAS
 
Os ameríndios não se moviam como os europeus, porque tinham o poder de ser onças. Onçar. Isto incomodava muito os europeus, que caminhavam de um modo sério e estreito. Mas o que incomodava mais os colonos era o silêncio dos ameríndios, que, por terem superpoderes, dispensavam as palavras e sobretudo a escrita. Imitavam, além disso, o modo como os europeus se moviam, porque a artificialidade do movimento, tão distante da destreza animal, lhes parecia muito engraçada.
 
Não havia como responder à mímica das onças, porque a um exercício mímico deve responder-se sempre, como numa breakdance battle, com outro exercício mímico. E os europeus só conheciam as palavras.
 
O exercício mímico vence, de resto, o exercício oratório. Foi por esta razão que o gesto concreto de Diógenes, que soltou um galo na ágora, ultrapassou a ideia comparativa de Platão.
 
Foi também por esta razão que a arte da performance nasceu nas Américas.
 
E é também por esta razão que o humor é uma forma de violência.

A MÃO DEFORMADA

 
A mão deformada escreve o poema
A mão deformada apaga o poema
A mão deformada reescreve o poema
A mão deformada guarda, discreta
e por tempo indefinido, o poema.
A mão deformada descreve o poema
A mão deformada edita o poema
A mão deformada publica o poema
A mão deformada vende o poema
A mão deformada compra o poema
A mão deformada interpreta o poema
aventurando-se, de bic azul em punho
nos lares semióticos, sintáticos, táticos
agramáticos, bióticos, visuais e exóticos
da palavra infernal. “Ali está, e grunhe
horrivelmente”. A mão não se detém.
A mão deformada aperta o poema
A mão deformada sublinha o poema
A mão deformada analisa o poema
A mão deformada inspeciona o poema
abafa-o, sobrevaloriza-o, vira sobre ele
café ou vinho, uma mancha eclética.
A mão deformada categoriza o poema
A mão deformada define o poema
A mão deformada parodia o poema
escrevendo outro poema, rasga-o
come-o, faz dele um aviãozinho e
se tiver mais arte, um barquito, pato
cisne ou workshop gratuito de origami.
A mão deformada complica o poema
A mão deformada teoriza o poema
A mão deformada compara o poema
a um filme tardio de Federico Fellini
ou a uma maçã fuji em decomposição.
A mão deformada disseca o poema
A mão deformada transcreve o poema
A mão deformada parafraseia o poema
A mão deformada desemprega o poema
e a poeta, que são no fundo muito úteis
pois o que ocuparia a mão deformada
senão o poema, a poeta e a inutilidade
dos três? O machado afiado do talhante
ou a agulha de mão do senhor alfaiate?
A mão deformada costura o poema
A mão deformada defende que o poema
é feminista, machista, queer, colonial
trans, homofóbico, fascista e (suponho
que também) ecológico, ilógico, racial
e (suponho que tudo, menos) classista.
A mão deformada mastiga o poema
A mão deformada rasura o poema
A mão deformada incendeia o poema
A mão deformada reescreve o poema
recomeçando assim o círculo milenar
de todas as mãos deformadas, até que
num dia solarengo como outro qualquer
a mão deformada, que é como qualquer
outra mão, morre. E depois de cremada
e depositada nas águas pelos discípulos
vem substitui-la, com a mesma certeza
penetrante e magra, outra mão deformada.

[POEMA PUBLICADO NA CAPIVARA CULTURAL. BRASIL. 2020.]
PEQUENA TRAPAÇA ENGENHOSA
 
Obedeço aos impostos anuais e às instituições onde ensino
poesia, desaprendendo a pátria, o belo, o cânone e a praxe.
Sou uma mulher leal, ordinária e tenho alguma dificuldade
em posicionar-me verticalmente no hábito e na prática.
 
Obedeço à respiração, ao sol e cada vez mais ao cansaço
dos dias úteis, reconhecendo a luz e a beleza espontânea
que há em inspirar e expirar, tremendo, uma e outra vez
até à morte, ao sonho e à memória. Sou um rapaz terno
 
que obedece às regras de segurança e tédio dos aeroportos
à gravidade, à visão, à escuta. Deposito no verso o sopro
do que vejo e escuto, e escrevo de cabeça erguida, ouvido
voltado para a reverberação do grande mundo reprimido.
 
Obedeço ao poema, que é o silêncio em fala, a curvatura
do meu corpo até ao chão, noventa graus um pouco tortos
e interessam-me os tortos, o mundo coxo. Vou de orelha
encostada às nossas mães e avós, de olho e retina aguçados
 
sobrevoando a história total. Interessam-me o estudo aéreo
e o rigor panorâmico das aves. Sou uma galinha, descendo
do antigo quetzalcoatlus e ataco, visceral e gorda, o antigo
e masculino consórcio dos deuses. O poema é um tijolo alado. 
 
Obedeço sobretudo ao amor, aos semáforos e aos sinais de rua.
Um assegura os outros, os outros asseguram o amor. A carne
interessa-me também, como me interessam os sismos, a dor
as mãos e as correntes de água. Trepo o diospireiro da casa
 
com o único propósito de comer. Caio, ascendo e incendeio
o jardim. Sou uma menina muito delicada e é com delicadeza
que projeto o poema monstruoso, como um ralo no Pacífico
e logo adormeço. Nasci para exercer o feminino e o atómico.
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​© LINO. 2023.
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