[DA ANTOLOGIA DE POEMAS NÃO É ISTO UM LIVRO. COLÔMBIA. 2020.]
CALEIDOSCÓPIO A suspensão coloidal das nuvens no trânsito. O número de habitantes de Singapura (新加坡共和国, 5 000 000, [114.º]). Estar de joelhos onde acabem as tuas costas. A cor azul dos teus atacadores no tapete da entrada. Uma péssima tradução de Aristóteles. Andar para trás na Pan-American Highway. Como não há semelhanças entre um vinil dos Smiths e um moinho de vento? São ambos processos de fragmentação: please please please let me get what I want Os solavancos homéricos do autocarro nas manhãs onde não beijo ninguém. O crânio dançante das galinhas. Saber que o jazz se ouve de barriga para o ar. O rapaz que me disse aos 6 que eu era uma varanda ensinou-me o que era uma metáfora. A + B = C. Saber quantos fonemas tem a língua portuguesa. Expulsar o gato. Ficar a sós com Schrödinger na caixa. "Só plantará um jardim de cabeça para baixo quem não ler a Historia Plantarum". Naná quem disse. Uma ferida é a interrupção da continuidade do tecido corpóreo. "Nonsense Botany" foi o que escrevi num bilhetinho para Naná. Naná não respondeu. São 31. Se Sócrates sorriu para a morte de dedo em riste, por que não haveria eu de sorrir-te na fila do metro? A primeira nódoa na camisa foi a tua boca. A indecisão do pássaro em afogar-se no charco ou o primeiro salto dos jogos olímpicos. Pintar um quadro numa praia de nudistas. O movimento centrífugo que os mamíferos desenham antes de deitar-se. Aprender que o amor não é um rondó: três couplets, quatro ritornellos, um coração só, A-B-A-C-A-D-A mão no seu lugar: aos ombros te carrego pelos lábios. A tosse pneumática a 15 de novembro. As unhas raspadas. O suicídio do hamster Tobias a 5 de janeiro. Cf. Werther. A minha festa de aniversário de 1999. A tua saia. Tu. O último massacre do Sudeste Asiático, quão caro está o tabaco, o preço da papaia, uma nação nas meias. Ser perpendicular à porta de tua casa. A vermelha, que rodopiava. O lavatório, o queixo. Dois olhos no espelho: girl, girl that I see,/ is there a literary-est mirror than me? UM QUADRO BRANCO SOBRE UM FUNDO BRANCO
Quando Malevich pintava os pássaros eram destinados a rectângulos e as mãos das raparigas a linhas horizontais vermelhas azuis verdes ou amarelas que eram as cores com que Malevich não pintava pássaros ou mãos de raparigas mas a subtração entre os dois. Notável a destreza com que Malevich suspendia o dedo indicador sobre a mesa para dizer Não é mais preciso pintar aquilo que se vê Mas ninguém entendia Malevich e Malevich aborrecia-se. Aspirando à prática das suas considerações Malevich tinha os dois pés sobre um banco quando numa das tardes de 1915 terminou um quadrado preto sobre um fundo branco. Fumava uma cigarrilha e hesitava: Mostrá-lo aos amigos, aos alunos? Expô-lo numa galeria, colocá-lo no museu? Um quadrado preto sobre um fundo branco. Que mais podes querer, Kazimir Malevich? Um quadrado preto sobre um fundo branco. Mas Kazimir Malevich queria mais: um quadro branco sobre um fundo branco. Eriçaram-se em 1918 os cabelos de Malevich perante aquela forma que não era outra coisa senão a eliminação de todas as formas. Malevich pensou: nunca mais pinto um quadro. Aleksandra Ekster pensou: Malevich nunca mais pinta um quadro. Mas Malevich pintou. Muitos esqueceram até o que Malevich disse com o dedo em riste num atelier em Verbovka Resta-lhes apenas a imagem do seu indicador volátil. Alguns juram ainda tê-lo ouvido murmurar em 1935 como se alinhasse a testa com a morte: Então a tua lição, Kazimir Malevich, nunca esteve na eliminação de todas as formas mas na impossibilidade de eliminá-las. Por isso um quadro branco sobre um fundo branco serve unicamente para: 1) redestinar os rectângulos a pássaros 2) abrir as paredes e destrinçar todas as cores 3) entender que o grito antecipa a boca 4) desenhar bocas para o grito 5) isto é, desbocar A PANTUFA
I As nossas enormes pantufas tinham orelhas, bocas e dentes para que desbravássemos o chão, a casa e os pais e suportássemos com um leão nos dedos o frio português As pantufas vendem-se no supermercado, são para crianças (porque os adultos, alguém disse, parecem ridículos com elas) e o seu preço sobe ou desce a partir do quão exótico o animal é. Mas nem todas as pantufas têm a forma de um animal, exótico ou não, e nem todas as crianças têm pantufas, com a forma de um animal ou não. Nós tivemos um par cada um, cuidámo-lo, crescemos e esquecemo-lo como esquecemos o conforto do nosso país, da casa e dos pais por agora desbravarmos outras terras e outros idiomas, estrangeiros, tu e eu sem um leão nos dedos, com algum azar, solidão e brio. II Pantufa vem do francês pantoufle; em inglês diz-se slipper (do verbo to slip, e lembra slippering, que é um castigo a chicotadas, reguadas ou chineladas. Atroz, absoluto). Pantufla, do espanhol, tem entre as fonéticas a mais cheia e confortável: como devem ser de resto as próprias pantufas inventadas ninguém sabe ao certo por quem nem quando e onde. Este, Oeste, século XII. Regalia certamente de poucos cobiçada talvez por alguns e desconhecida de muitos, a pantufa mais antiga do que o astrolábio, existe há tanto tempo como a bússola e há quase tanto tempo como a ambulância. A pantufa não consta entre os objetos que se levariam hipoteticamente para uma ilha deserta. A pantufa não salva nem alimenta. Aquece. E como qualquer objeto III foi adquirindo ao longo do tempo novas funções e feitios. No século XXI a pantufa é usada nos desertos dos Estados Unidos: El Paso, Arizona ou San Diego. Feita à medida de todos os sapatos indocumentados a pantufa, vendida por mexicanos a mexicanos, cobre as pegadas dos que, numa mão, carregam os filhos e na outra a garrafa de água. A garrafa de água, forrada com fita-cola, afasta o sol; evita também o reflexo do sol no plástico e o disparo de uma AR-15. Não parecem ridículos os indocumentados ao longo da fronteira. A pantufa, maciça e multiplicada prediz o número de corpos desaparecidos. As famílias dos mortos jamais recebem de volta as pantufas. Há por isso quem, além das garrafas forradas colecione pantufas perto de onde os indocumentados e as indocumentadas tombam. O debate entre os artistas estadunidenses que trabalham com pantufas e garrafas é essencialmente estético e inútil: limpar ou não a pantufa antes de colocá-la no museu? Mas não há nenhuma estética na pantufa, maciça e multiplicada ao longo da fronteira nos pés dos indocumentados. Não há estética onde não há Deus. |
[DOIS TEXTOS PUBLICADOS NA REVISTA TXON. CABO-VERDE. 2020.]
A MÍMICA DAS ONÇAS
Os ameríndios não se moviam como os europeus, porque tinham o poder de ser onças. Onçar. Isto incomodava muito os europeus, que caminhavam de um modo sério e estreito. Mas o que incomodava mais os colonos era o silêncio dos ameríndios, que, por terem superpoderes, dispensavam as palavras e sobretudo a escrita. Imitavam, além disso, o modo como os europeus se moviam, porque a artificialidade do movimento, tão distante da destreza animal, lhes parecia muito engraçada. Não havia como responder à mímica das onças, porque a um exercício mímico deve responder-se sempre, como numa breakdance battle, com outro exercício mímico. E os europeus só conheciam as palavras. O exercício mímico vence, de resto, o exercício oratório. Foi por esta razão que o gesto concreto de Diógenes, que soltou um galo na ágora, ultrapassou a ideia comparativa de Platão. Foi também por esta razão que a arte da performance nasceu nas Américas. E é também por esta razão que o humor é uma forma de violência. A MÃO DEFORMADA A mão deformada escreve o poema A mão deformada apaga o poema A mão deformada reescreve o poema A mão deformada guarda, discreta e por tempo indefinido, o poema. A mão deformada descreve o poema A mão deformada edita o poema A mão deformada publica o poema A mão deformada vende o poema A mão deformada compra o poema A mão deformada interpreta o poema aventurando-se, de bic azul em punho nos lares semióticos, sintáticos, táticos agramáticos, bióticos, visuais e exóticos da palavra infernal. “Ali está, e grunhe horrivelmente”. A mão não se detém. A mão deformada aperta o poema A mão deformada sublinha o poema A mão deformada analisa o poema A mão deformada inspeciona o poema abafa-o, sobrevaloriza-o, vira sobre ele café ou vinho, uma mancha eclética. A mão deformada categoriza o poema A mão deformada define o poema A mão deformada parodia o poema escrevendo outro poema, rasga-o come-o, faz dele um aviãozinho e se tiver mais arte, um barquito, pato cisne ou workshop gratuito de origami. A mão deformada complica o poema A mão deformada teoriza o poema A mão deformada compara o poema a um filme tardio de Federico Fellini ou a uma maçã fuji em decomposição. A mão deformada disseca o poema A mão deformada transcreve o poema A mão deformada parafraseia o poema A mão deformada desemprega o poema e a poeta, que são no fundo muito úteis pois o que ocuparia a mão deformada senão o poema, a poeta e a inutilidade dos três? O machado afiado do talhante ou a agulha de mão do senhor alfaiate? A mão deformada costura o poema A mão deformada defende que o poema é feminista, machista, queer, colonial trans, homofóbico, fascista e (suponho que também) ecológico, ilógico, racial e (suponho que tudo, menos) classista. A mão deformada mastiga o poema A mão deformada rasura o poema A mão deformada incendeia o poema A mão deformada reescreve o poema recomeçando assim o círculo milenar de todas as mãos deformadas, até que num dia solarengo como outro qualquer a mão deformada, que é como qualquer outra mão, morre. E depois de cremada e depositada nas águas pelos discípulos vem substitui-la, com a mesma certeza penetrante e magra, outra mão deformada. [POEMA PUBLICADO NA CAPIVARA CULTURAL. BRASIL. 2020.] PEQUENA TRAPAÇA ENGENHOSA
Obedeço aos impostos anuais e às instituições onde ensino poesia, desaprendendo a pátria, o belo, o cânone e a praxe. Sou uma mulher leal, ordinária e tenho alguma dificuldade em posicionar-me verticalmente no hábito e na prática. Obedeço à respiração, ao sol e cada vez mais ao cansaço dos dias úteis, reconhecendo a luz e a beleza espontânea que há em inspirar e expirar, tremendo, uma e outra vez até à morte, ao sonho e à memória. Sou um rapaz terno que obedece às regras de segurança e tédio dos aeroportos à gravidade, à visão, à escuta. Deposito no verso o sopro do que vejo e escuto, e escrevo de cabeça erguida, ouvido voltado para a reverberação do grande mundo reprimido. Obedeço ao poema, que é o silêncio em fala, a curvatura do meu corpo até ao chão, noventa graus um pouco tortos e interessam-me os tortos, o mundo coxo. Vou de orelha encostada às nossas mães e avós, de olho e retina aguçados sobrevoando a história total. Interessam-me o estudo aéreo e o rigor panorâmico das aves. Sou uma galinha, descendo do antigo quetzalcoatlus e ataco, visceral e gorda, o antigo e masculino consórcio dos deuses. O poema é um tijolo alado. Obedeço sobretudo ao amor, aos semáforos e aos sinais de rua. Um assegura os outros, os outros asseguram o amor. A carne interessa-me também, como me interessam os sismos, a dor as mãos e as correntes de água. Trepo o diospireiro da casa com o único propósito de comer. Caio, ascendo e incendeio o jardim. Sou uma menina muito delicada e é com delicadeza que projeto o poema monstruoso, como um ralo no Pacífico e logo adormeço. Nasci para exercer o feminino e o atómico. [DOIS TEXTOS PUBLICADOS NA REVISTA ESCAMANDRO. BRASIL. 2020.] Era uma vez um poeta que perguntou numa sessão de poesia portuguesa: o que é escrever? Foi reprovado pelos olhares cortantes dos ouvintes. Sentiu-se tão mal que nunca mais explorou outras formas de escrita e, em menos de um ano, dizia sem pestanejar que a poesia era feita de palavras. Tinha muito medo de perguntar o que as palavras eram.
Plasticina. São como a plasticina. Fazem acontecer, entretém e desfazem coloridamente a vida. *
Quase não tenho amigos poetas, porque os poetas são muito parecidos com os cristãos. Querem e lutam muito por um lugar no céu. Se escrever trouxesse reconhecimento, estariam certos.
Não estão certos. Não são poetas nem cristãos. Antes o céu que o reconhecimento. Preferivelmente, nenhum dos dois. *
O beija-flor bate as asas 200 vezes por segundo. O que fizemos nós de tão grandioso, Mariana?
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Da lista de profissões abaixo, quem você salvaria na eventualidade do mundo acabar e a humanidade poder recomeçar o mundo noutro lugar?
(imagine uma lista que inclui 15 profissões diferentes) Há um certo prazer em dizer que ninguém escolheria os poetas e o prazer pertence exclusivamente aos poetas. *
Era uma vez um poeta que perguntou: o que é escrever? E foi maravilhoso.
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O poema chega quando cruzo a rua para ir comprar pãezinhos. Quantos pãezinhos mais até ao último dos poemas?
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Vamos refletir sobre o significado do significado. Vamos refletir sobre refletir sobre o significado do significado. Vamos.
OS GIGANTES DE TENOCHTITLAN mil quinhentos e vinte e um Como destruir um templo e construir outro? Os espanhóis quiseram dar o exemplo quando ao chegar ao México, decidiram: “destruiremos o Templo Mayor e (apesar de não conseguirem pronunciá-los) Huitzilopochtli, Tlaloc”. Ação: com a mão de obra dos aztecas e usando a matéria do Templo, “carregarão as suas próprias pedras até reconhecerem, sem queixa ou interrogação Deus-todo-poderoso”, os espanhóis ergueram a Catedral de Zumárraga perto das novas ruínas. mil quinhentos e trinta e dois – sessenta dois Era pequena, e não satisfez o desejo codicioso de grandeza universal (ainda que o universo fosse mais pequeno nesses tempos). “Temos então de construir outra”, disse um dos espanhóis. “Obviamente”, disseram todos os outros. O Papa anuiu. Construíram-na. Usaram mais ou menos dois séculos até terminá-la, porque dois séculos equivaliam, em tempo, à qualidade da grande voraz nação espanhola. O seu nome, pio e sólido além de hierático, dura outros dois séculos. Assim: La Catedral Metropolitana de la Asunción de la Santísima Virgen María a los cielos mil quinhentos e vinte e um – Porque o inimigo andava extremamente ocupado e distraído, os aztecas, que carregavam as enormes pedras do próprio Templo (mais sofisticado e belo do que as duas catedrais espanholas), venceram em silêncio, inteligentes, esta disputa sagrada. Como? Memorizando, em cada um dos milhares de calhaus um deus. Yolotsin. E, quando o inimigo adormecia preocupado com o capital investido na terceira nave os índios e as índias escapavam, gigantes, para rezar ajoelhados à pedra. A matéria viva e a própria vida. |