LANÇAMENTO 1 DE NOVEMBRO DE 2022 LIVRARIA TÉRMITA (PORTO, PORTUGAL) COM PEDRO EIRAS |
RECICLAGEM DO PODER. UMA EPÍGRAFE + UM ENSAIO + UMA ENTREVISTA SEGUIDOS DE 5 OBJETOS © Mariposa Azual. Novembro 2022 MÓNICA GONZÁLEZ GARCÍA: Essa pretensão de controle imperial também aparece no que tem a ver com o controle da correção da fala, da escrita, da língua, da ortografia, etc. Em “Manual da língua de Camões” você ironiza a respeito do desconforto horrorizado que provoca em alguns portugueses “a liberdade e imenso perfil criativo com que as comunidades das ex-colónias portuguesas parecem encarar a Língua Portuguesa” (p. 142 na edição brasileira). Não posso deixar de pensar no capítulo “Carta pras Icamiabas” de Macunaíma (1928), onde Mário de Andrade ridiculiza as enormes diferenças entre o português falado e o escrito no Brasil, momento em que na escrita ainda primava a norma linguística metropolitana. Nesse sentido, O kit parecesse procurar burlar não só os conteúdos desses discursos dos saudomasoquistas mas também a própria forma, ou seja, a “Língua Portuguesa” com maiúscula. Poderia comentar sobre isso? Até que ponto algumas estéticas das ex-colónias, como o modernismo brasileiro, servem como arquivo para dar forma ao seu próprio projeto anticolonial?
PATRÍCIA LINO: A uniformização da língua portuguesa, que diz respeito, em primeiro lugar, à escrita (lembrando, justamente, o que dizia sobre a hierarquia colonial que rege as matérias e as ferramentas, e na qual a palavra escrita ocupa o topo da escala) está na base de muitos e variados projetos institucionais modernos. A “Língua Portuguesa”, grafada com maiúscula, é, no entanto, tão irreal como a “História”. Impossível não pensar, para lá de Mário, em Tarsila, Oswald ou Vicente do Rego Monteiro que, precisamente por dominarem as regras uniformizantes da “Língua Portuguesa” ou a estrutura monodisciplinar e grave do livro de poemas ocidental, dão o primeiro passo no exercício de apropriação coloquial, humorística e interdisciplinar que marcará a poesia brasileira de vanguarda por décadas. Se Tarsila e Oswald, influenciados sobretudo pela dupla Tarsila-Cendrars em Feuilles de Route (1924), fazem Pau Brasil (1925), composto por textos e desenhos paródicos, e Oswald se arrisca logo depois na composição graficamente mais ousada do Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade (1927), Rego Monteiro não só antecede e acompanha o gesto político, humorístico e estético da dupla Tarsila-Oswald, como inverte a sequência narrativa europeu-visita-encantado-as-Américas. Em Quelques Visages de Paris (1925), que se segue a Légendes, Croyances et Talismans des Indiens de l’Amazone (1923) do mesmo autor, é um chefe indígena fictício que visita Paris. Reparo que Tarsila, Oswald e Rego Monteiro ou os dois poetas chilenos que li e reli mais, Parra e Martínez, não separam o fazer do poema da visualidade e do humor. Estes três movimentos (escrito, imagético e paródico) constituem, de modo intrincado, um projeto anticolonial de resistência que, ao desdobrar-se, como dizia, por décadas, na poesia concreta, no neoconcretismo ou no poema/processo, me ensina, hoje, a lançar a crítica ao poder e à comodidade. E assim como estes objetos modernistas e vanguardistas não terminam, por reorientarem a dinâmica genial e absoluta do poema ou do livro de poemas tradicional, O Kit também não acaba. Há no traço e no tom inacabados dos desenhos e dos poemas de Tarsila, Oswald e Rego Monteiro, uma proposta não-original de infinito. [Excerto de "Ferramentas para des-cobrir o sujeito imperial da pós-modernidade. Entrevista com Patrícia Lino por Mónica González García".]
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