O BARCO
Era com entusiasmo que vinte marujos se reuniam o mais perto da proa para escutar o mar. Tinham jurado uns aos outros que nunca mais voltavam a terra, porque a terra, diziam entre si, separava os homens. O mar, diziam ainda, voltava a uni-los e chegava para todos e a terra parecia sempre pequena de mais. Era também com entusiasmo que um dos marujos carregava um saco de livros às costas e dizia: – Aqui está Al Berto, aqui está Rimbaud, aqui está Verlaine. Nessas alturas, nem o mar bastava. – Aqui está Fernando Pessoa, que escreveu tanto e quase nunca publicou, aqui estão as duas faces do amor – e não sabiam se o amor tinha muitas mais ou se tinha apenas uma, mas isso parecia não importar –, aqui está Dostoiévski, aqui está a cura. — A cura?, perguntou um marujo. — A cura, repetiu o outro. — A cura não existe. O que existe é a vontade de viver. O outro encolheu os ombros. Todos os marujos encolheram os ombros. E encolher os ombros foi o modo de os marujos dizerem o que o outro já tinha dito, que a cura não existe, o que existe é a vontade de viver. Nos ombros carregavam o mundo e isso nem era triste nem alegre. Era assim. Não saíam do barco porque era assim. Nascer e morrer. São coisas certas. Mas a questão não está em ser ou não ser, porque isso qualquer homem ou mulher, mesmo que não o tenha lido, sabe repetir e sabe que é de Shakespeare e sabe até dizê-lo em inglês se lho pedirem. Mas a questão não está em ser ou não ser, está em safar-se ou não safar-se. E entre uma coisa e outra, os marujos sabiam que, caso ficassem no barco, iam safar-se. Também sabiam que o barco podia existir em qualquer lugar. Podia, aliás, disfarçar-se de casa, automóvel, carroça, motociclo, de todas as coisas que podem mover-se na terra. O barco nem tinha que ser um barco. Bastava apenas que existisse na cabeça dos marujos. Essa era a força das imagens, de poder ver tudo sem que tudo realmente fosse. E a força das palavras estava na força das imagens. Isto ficou evidente quando um dos marujos disse “flor” e uma flor brotou. Melhor: furou o asfalto. E ninguém mais, para além dos marujos, viu a flor. Outro marujo caiu ainda na inocência de dizer: — Uma flor furou o chão. Conseguem ver? Uma flor acaba de nascer bem no centro da praça. E sem que soubesse, fazia poesia, que acontece independentemente das nossas vontades, seja com a flor que fura o asfalto seja com Charlot ou com a nossa imitação de Charlot que, como também sabiam os marujos, andava com as pernas arqueadas porque tinha pressa de viver. A poesia acontece, na grande maioria do tempo, sem que ninguém dê conta. O resto é andar às vozes. — Andar às vozes?, perguntou um marujo. Que quer isso dizer? Escutar. Andar às vozes é escutar e depois escrever. Quando um marujo grita “uma flor furou o chão!”, não pode esperar que os outros, fora do barco, vejam a flor. Tem de escrever. Há várias formas de escrever. O marujo pode fazê-lo com palavras, com música ou com imagens, como aquele outro marujo que, certa vez, desenhou um tanque e um beija flor e o que se concluiu foi que o beija flor conseguia voar e o tanque não. E depois outro marujo perguntou: – Posso, sem tanques, revoltar-me? Apenas para que o outro lhe respondesse “sim”. Consegues perceber? Quando se dá pela flor, a poesia já aconteceu muito antes. A única coisa que se pode fazer é registar o acontecido. É esse o privilégio de ter um barco imaginário. Gastar a felicidade. Gastar a felicidade é como beber uma coca-cola. Não é preciso escrever sobre isso. Pode guardar-se o tamanho do copo e o modo como o vento soprava nos olhos. Além disso, outros escreverão por nós, e por isso existem poemas como aquele que todos os marujos reconheciam, e que dizia assim: Traziam-me coca-cola às 17:30 porque a partir das 17:30 eu podia sofrer mais pela falta de luz pela falta de pássaros nos telhados Traziam-me coca-cola às 17:30 porque em dias de inverno escrevo mais com a chuva entristecem-me estas coisas há porém sempre um homem que diz Prepara-te, marujo, que este quarto não é mais um quarto é o que nós quisermos que ele seja e esta noite ele é um barco |
Texto escrito depois de um encontro da LEITURA FURIOSA com o grupo da Comunidade Terapêutica Ponte da Pedra (Porto)* em maio de 2013. Incluído no volume Leitura Furiosa [2000-2016], ed.: Luiz Rosas e Regina Guimarães, Outro Modo, 2008.
A LEITURA FURIOSA é um encontro improvável entre escritores e grupos de pessoas "zangadas" com a leitura. Não propriamente analfabetos, antes pessoas que aprenderam a ler mas que a vida afastou da leitura. A Leitura Furiosa explora o vasto território do "escrever com". Pretende-se que os participantes assistam ao parto de um texto. A LEITURA FURIOSA Porto tem sido apoiada, desde a primeira hora, pelo Serviço Educativo do Museu de Serralves. *Luís Filipe Jesus Alves, Joana C., Justino de la Rocha, Catarina Santos, Augusta Dias, Maria Manuela S. Silva Ribeiro, Rute Santos, José Fernandes, J. M., Carlos Neiva, Norberto Miguel Parento Gonçalves, Flávio C., Miguel Ferreira, José Carvalho Gonçalves, Simão Monteiro, Mário Araújo, César Amorim, Jorge Esquinas, Norberto J. O. S. Costa, Andreia Machado e Madalena Nunes. |