MAPAS
Status quaestionis: confundir as casas, as camas, as caras. Não saber como explicar aos daqui isto e aos de lá aquilo. Ter saudades das palmeiras. Fartar-me das palmeiras. Olhar de novo as palmeiras, dizer-te “a primeira menção a este tipo de planta está em Homero, na Odisseia, quando Ulisses, envergonhado diante de Nausícaa, lhe diz que os cabelos dela são como uma [palmeira]”, parar, sorrir-te, continuar: “talvez seja este o primeiríssimo compliment ocidental. Your hair looks like a palm tree”. Acrescentar que no Porto também as há, junto ao mar, que o Eugénio escreveu sobre elas, que a Sophia, que leu tanto e tão bem Homero, tem também um poema sobre as arecaceae. Lembrar mais tarde as palmeiras de Gonçalves Dias para esquecê-las logo depois. Pausa: – existem ou não palmeiras, Quintana? Oswald? Ou macieiras, Murilo? Desistir das palmeiras, das macieiras, das baboseiras. Desistir da canção. 1, 2, 3, escuto, 1, 2, 3: os exilados não cantam. * Desenhávamos aviões-mapa coloridos. Pouco nos importava se o nosso avião cruzava mais depressa do que os outros aviões o pátio da Dona Augusta. Preferíamos ver as cores lá no alto, invadir o campo de milho mais próximo, correr muito para apanhá-las a tempo. O mundo, dividido entre azul e verde, cabia efetivamente num avião de papel. E tudo isto era possível, porque nunca nos interessamos pelas coordenadas da nossa posição no mundo. * Serás sempre muito pequeno aos olhos daquele que viaja no interior de um avião. Já aquele que viaja no interior de um avião terá, fora dele, mais ou menos o mesmo tamanho que tu. Grande mesmo é o avião. E nem tão grande assim. * Não adianta imaginar que o adeus é o núcleo de um núcleo de um núcleo, porque, neste caso, o núcleo de um núcleo de um núcleo será sempre grande o suficiente. Dizer adeus é um buraco. A lucidez, não nos ensinaram, fez um pacto com a distância. Como aguentar, no entanto, a lucidez? * A nossa leitura de um mapa depende sempre da nossa posição no mundo. Exemplo: em relação ao meu corpo em Pequim, procuro Austin, no Texas. Vejo, portanto, Austin a partir de Pequim. Pequim define Austin, porque Austin será também descrito pelo que há entre Pequim e Austin. Isto não acontece em nenhum dos mapas que desenhei quando era criança. Não sabia como posicionar-me dentro deles, não pensava sequer em posicionar-me; sabia que estava no mundo e o mundo, bem como a vida, não era só isso. Era exatamente isso. * Não nos mentem, faz frio. São três horas em Lisboa e, lá fora, todos caminham como se, de facto, o ano terminasse hoje. Uma volta em torno do Sol. Duas voltas em torno do Sol. Vinte e três voltas em torno do Sol. São apenas voltas em torno do Sol. Homo sum humani a me nihil alienum puto? Ah. E não sei. |
Divide o círculo em trezentos e sessenta graus. Tem em conta paralelos, meridianos, antimeridianos. Depois latitude, longitude (posição horizontal). Divide cada grau em sessenta minutos — valores positivos (Norte, Leste), negativos (Sul, Oeste) —, subdivide cada sessenta minutos em sessenta segundos; agora, decimalmente, cada segundo em frações.
A subdivisão bem como o exercício podem repetir-se infinitamente. Agora corre a pé coxinho, beija a ponta do cotovelo direito, depois o esquerdo (2x) e espirra para dentro. Tudo isto, claro, enquanto recitas de memória os cinco primeiros versos da Odisseia. Uno, dos, tres: vamos, empieza. * Ouve, nada disto importa. Quantas vezes tentaste traduzir o difícil poema indiano, se beijaste a boca que mais procuraste, quantas vezes cantarolaste o décimo verso do idílio quinto de Teócrito, Godard où Bresson, o que disse afinal Sócrates a Fedro, e Fedro a Sócrates, quantas sinfonias compôs Beethoven, Le charme discret de la bourgeoisie, se conheces Rilke, quais são as primeiras cinquenta e duas casas decimais de π, sobre o que trata a tese do quadragésimo estudante de doutoramento no Departamento de Física do Alabama, em que ano leste pela primeira vez Séneca, e o plot da Gerusalemme Liberata, se escreveste algum poema formidável — o teu grande logro! —, onde o publicaste, quem escreveu sobre ele, quantas resenhas no jornal, de 0 a 5 estrelas o teu novo volume de ensaios, vinho, piano e aperitivos no lançamento: sim, como não? Nada disto importa. Ou importa muito pouco. No fim, disse-te, é ter um peito onde dispor a cabeça. * Chegaram também tarde à minha vida as palmeiras? * Volto a olhar pela janela do teu carro os edifícios tão grandes de Chicago. Daqui, a minha rua, a minha cidade e o meu país são muito mais nítidos. Não sei, no entanto, o que dizer-te deles ainda. Assobio a Jazz Suite na esperança de que não notes. Mas é como se todos em Chicago o soubessem. — Her hair looked like a palm tree. — What? You laugh. — Her hair looked like a palm tree. |
Published in Brazil (2015) and presented in Portugal (2018).