HELICÓPTEROS, PUTAS, BICHAS, FUFAS E PLAYBOYS
Todos os espaços são imaginários a partir do momento em que temos uma cabeça. A linguagem é o que está entre nós, os espaços imaginários e aquilo que os outros nos vêm dizer. É mais aquilo que nos dizem do que aquilo que nos deixam dizer. A nossa cabeça é frágil, porém não há nada mais forte do que a nossa cabeça. E as palavras são esta coisa que nunca vamos entender muito bem: a poesia, por exemplo, é feita de palavras e são, no entanto, palavras que usamos para dizer “não gosto de poesia” (1). É quase como quando queremos falar com uma rapariga, estando ainda muito longe de nos pilotar sequer a nós mesmos, e a única coisa que nos ocorre dizer-lhe é: “Ei tu aí, és como um helicóptero. Gira e boa”. E a rapariga ofende-se, ri, ou não sabe o que responder-nos, e esquece-se que a linguagem não lhe permite dizer-nos de volta: “Ei tu aí, és como um helicóptero. Giro e bom”. E nenhuma rapariga há de inventar trocadilho tão funcional porque lhe ensinaram que ela é o trocadilho. Mas ela não é. Além disto, dizê-lo a mais de uma rapariga implica acreditar que há demasiados helicópteros – um, dois, três, quatro, demasiados helicópteros – e céu que não baste. Não há céu que baste quando nos repetimos para ser iguais. Se continuarmos a repetir “gira e boa”, não haverá céu que baste para tantos círculos. E todos nós sabemos que não é preciso tirar os pés da terra para desenhar um círculo. É preciso saber que o mundo é muito grande. Não fazemos a mais pequena ideia de como será ser feliz daqui a trinta anos, porque trinta anos são muito tempo, mas dizem-nos muitas vezes como tem de ser ser feliz daqui a trinta anos. A nossa cabeça é frágil, porém não há nada mais forte do que a nossa cabeça. Somos muito mais complicados do que o mundo que inventaram para nós. O mundo que inventaram para nós não nos assusta. O mundo que realmente existe e de que não nos falam tanto assim, assusta. Não existe, porém, mal algum em ter medo do que não se conhece. Existe mal, sim, em dar nomes às coisas que não conhecemos se até aquelas que conhecemos podem ter tantos nomes. Uma rapariga que tem muitos namorados é só uma rapariga que tem muitos namorados e um rapaz que tem muitas namoradas é só um rapaz que tem muitas namoradas e uma rapariga que tem muitas namoradas é só uma rapariga que tem muitas namoradas e um rapaz que tem muitos namorados é só um rapaz que tem muitos namorados. Não há helicópteros nem putas nem bichas nem fufas nem playboys. Antes disso, o amor é muito grande. O amor é tão grande como o mundo. O mundo é enorme. Fazer das palavras grandes ou pequenas depende se as dizemos de cabeça para cima ou de cabeça para baixo. Se repetirmos “amor” muitas vezes de cabeça para cima, o amor cutuca-nos na cabeça e aparece. Toda a gente sabe disto. Se repetirmos “ódio” muitas vezes de cabeça para baixo, o ódio também aparece. Se quisermos alargar o mundo do outro repetindo “amor amor amor amor amor amor”, podemos fazê-lo e talvez o outro cresça connosco, e talvez lhe possamos dar a mão, e talvez haja um espaço onde possamos olhá-lo nos olhos e dizer, “eu amo-te”, sem que para isso tenhamos ouvidos grandes. Se quisermos diminuir o mundo do outro repetindo “ódio ódio ódio ódio ódio ódio”, podemos fazê-lo e talvez o outro cresça sem nós, e talvez tudo o queríamos era dar-lhe a mão, e talvez pudesse existir um espaço onde pudéssemos olhá-lo nos olhos e dizer, “eu amo-te”, mas tudo o que fazemos é encher-lhe o corpo de nódoas porque nos disseram que a cabeça dele era diferente da nossa. Todos os espaços são imaginários porque o que eu vejo agora tu não vês e estamos sentados no mesmo lugar, em cadeiras próximas; porque, quando tu choras, eu digo-te primeiro, “não quero que chores, quero um final feliz” e, caso alguém me pergunte pelo final feliz, eu hei de responder-lhe, “um final onde todos possamos rir”, para que depois perceba que tu tens tanto direito ao choro como eu tenho direito ao riso ou a tentar fazer-te rir. Be-a-triz Be-a-triz Be-a-triz Be-a-triz Be-a-triz Be-a-triz Se repetir o teu nome muitas vezes, até ele ser uma onda, até ao momento em que nos levantemos como uma onda, até que repitamos sincronizados o movimento, talvez tu pares de chorar. Talvez tu continues. Talvez fiquemos sempre aqui, com a vontade que há em estar aqui, ou talvez cresçamos para outro lugar imaginário como água, areia, terra, erva, ar. Não importa. Se tu me disseres, “eles vêm e levam-te tudo”, eu posso responder-te “tudo não” e, se tu me perguntares, “não?”, eu posso responder-te “não as coisas que tenho na cabeça”. A nossa cabeça é frágil e há cabeças mais frágeis do que outras. Não existe, porém, nada mais forte do que a nossa cabeça. Repete e diz ao outro: “Não existe, porém, nada mais forte do que a nossa cabeça”. |
Ilustração de Sofia Lomba
Texto escrito depois de um encontro da LEITURA FURIOSA com o grupo de crianças e jovens da Qualificar para Incluir — Associação de Solidariedade Social (Porto) em maio de 2014. Incluído no volume Leitura Furiosa [2000-2016], ed.: Luiz Rosas e Regina Guimarães, Outro Modo, 2018.
A LEITURA FURIOSA é um encontro improvável entre escritores e grupos de pessoas "zangadas" com a leitura. Não propriamente analfabetos, antes pessoas que aprenderam a ler mas que a vida afastou da leitura. A Leitura Furiosa explora o vasto território do "escrever com". Pretende-se que os participantes assistam ao parto de um texto. A LEITURA FURIOSA Porto tem sido apoiada, desde a primeira hora, pelo Serviço Educativo do Museu de Serralves. |