A PANTUFA
I As nossas enormes pantufas tinham orelhas, bocas e dentes para que desbravássemos o chão, a casa e os pais e suportássemos com um leão nos dedos o frio português As pantufas vendem-se no supermercado, são para crianças (porque os adultos, alguém disse, parecem ridículos com elas) e o seu preço sobe ou desce a partir do quão exótico o animal é. Mas nem todas as pantufas têm a forma de um animal, exótico ou não, e nem todas as crianças têm pantufas, com a forma de um animal ou não. Nós tivemos um par cada um, cuidámo-lo, crescemos e esquecemo-lo como esquecemos o conforto do nosso país, da casa e dos pais por agora desbravarmos outras terras e outros idiomas, estrangeiros, tu e eu sem um leão nos dedos, com algum azar, solidão e brio. II Pantufa vem do francês pantoufle; em inglês diz-se slipper (do verbo to slip, e lembra slippering, que é um castigo a chicotadas, reguadas ou chineladas. Atroz, absoluto). Pantufla, do espanhol, tem entre as fonéticas a mais cheia e confortável: como devem ser de resto as próprias pantufas inventadas ninguém sabe ao certo por quem nem quando e onde. Este, Oeste, século XII. Regalia certamente de poucos cobiçada talvez por alguns e desconhecida de muitos, a pantufa mais antiga do que o astrolábio, existe há tanto tempo como a bússola e há quase tanto tempo como a ambulância. A pantufa não consta entre os objetos que se levariam hipoteticamente para uma ilha deserta. A pantufa não salva nem alimenta. Aquece. E como qualquer objeto |
III
foi adquirindo ao longo do tempo novas funções e feitios. No século XXI a pantufa é usada nos desertos dos Estados Unidos: El Paso, Arizona ou San Diego. Feita à medida de todos os sapatos indocumentados a pantufa, vendida por mexicanos a mexicanos, cobre as pegadas dos que, numa mão, carregam os filhos e na outra a garrafa de água. A garrafa de água, forrada com fita-cola, afasta o sol; evita também o reflexo do sol no plástico e o disparo de uma AR-15. Não parecem ridículos os indocumentados ao longo da fronteira. A pantufa, maciça e multiplicada prediz o número de corpos desaparecidos. As famílias dos mortos jamais recebem de volta as pantufas. Há por isso quem, além das garrafas forradas colecione pantufas perto de onde os indocumentados e as indocumentadas tombam. O debate entre os artistas estadunidenses que trabalham com pantufas e garrafas é essencialmente estético e inútil: limpar ou não a pantufa antes de colocá-la no museu? Mas não há nenhuma estética na pantufa, maciça e multiplicada ao longo da fronteira nos pés dos indocumentados. Não há estética onde não há Deus. |
Presented in Barcelona (Spain), Porto (Portugal) and Los Angeles (US), 2018. Published in Études Lusophones (France), 2019.