sabe que não serei para ti
menos do que um sol
menos do que um sol
POR FAVOR,
NÃO FOTOGRAFE NEM FILME
A LEITURA PERFORMÁTICA.
MUITO OBRIGADA.
PAELLA
Cortando os tomates do almoço solarengo de domingo
que a mãe lhe ensinou a cozinhar sob a asa e os risos
de San Juan, para onde a dona Guadalupe se mudou
depois de o marido morrer há cinco compridos anos
e onde frequentou, às sextas, um curso grátis de escrita
poética, não a outra, porque sempre lhe interessaram
mais do que os romancistas, os poetas, que lançam
como ela dizia, palavras para a sombra e ficam à espera
não se sabe exatamente de quê, de quem, não houvesse
valor na escuridão, e onde aprendeu sobre translações
totalidade, a beleza do inútil miúdo, que a poesia diz
o que ela diz dizendo e que ela é, sem prerrogativas
o contrário do que todas as pessoas acham que ela é
como um bastão invisível pronto a acertar nos ausentes
e operacionais, Mariana bagunça depressa os cabelos
e pergunta:
— Achas que vale a pena escrever um livro de poemas?
Sacudidos os dedos, Maíra começa por cortar o pimentão
vermelho, e pensa sem demoras no último livro que leu
de Rosario Castellanos, recomendado, há alguns meses
por uma amiga de infância, e como gostou também
e muito, de Juana de Ibarbourou, como não se esqueceu
por vê-la tantas vezes em todos os lugares, da sua rosa
vertical e branca, furando discretamente o movimento
da própria continuidade, materializando, desse modo
a palavra, tão robusta como um martelo especulativo
tão reluzente e encarnada como esta verdura, curioso
aliás, como tudo continua existindo apesar do mundo
grosseiro e implacável, da superfície, e o canto grande
o que é exatamente o canto grande senão a insistência
em reinventar a vida, os pés sobre a terra, e a terra
sobre ambas as mãos, até que se endireita, suspira
e responde:
— Acho que não. Já há muitos.
[Publicado na Folha de S. Paulo. Brasil. 2022.]
Cortando os tomates do almoço solarengo de domingo
que a mãe lhe ensinou a cozinhar sob a asa e os risos
de San Juan, para onde a dona Guadalupe se mudou
depois de o marido morrer há cinco compridos anos
e onde frequentou, às sextas, um curso grátis de escrita
poética, não a outra, porque sempre lhe interessaram
mais do que os romancistas, os poetas, que lançam
como ela dizia, palavras para a sombra e ficam à espera
não se sabe exatamente de quê, de quem, não houvesse
valor na escuridão, e onde aprendeu sobre translações
totalidade, a beleza do inútil miúdo, que a poesia diz
o que ela diz dizendo e que ela é, sem prerrogativas
o contrário do que todas as pessoas acham que ela é
como um bastão invisível pronto a acertar nos ausentes
e operacionais, Mariana bagunça depressa os cabelos
e pergunta:
— Achas que vale a pena escrever um livro de poemas?
Sacudidos os dedos, Maíra começa por cortar o pimentão
vermelho, e pensa sem demoras no último livro que leu
de Rosario Castellanos, recomendado, há alguns meses
por uma amiga de infância, e como gostou também
e muito, de Juana de Ibarbourou, como não se esqueceu
por vê-la tantas vezes em todos os lugares, da sua rosa
vertical e branca, furando discretamente o movimento
da própria continuidade, materializando, desse modo
a palavra, tão robusta como um martelo especulativo
tão reluzente e encarnada como esta verdura, curioso
aliás, como tudo continua existindo apesar do mundo
grosseiro e implacável, da superfície, e o canto grande
o que é exatamente o canto grande senão a insistência
em reinventar a vida, os pés sobre a terra, e a terra
sobre ambas as mãos, até que se endireita, suspira
e responde:
— Acho que não. Já há muitos.
[Publicado na Folha de S. Paulo. Brasil. 2022.]
MANUAL PARA DECAPITAR HERÓIS
Achega-te, inala e corta, tal a machadada
no que suporta o busto, que quando a cabeça caia
te sobre ainda tempo para o entulho. Começa
por baixo, no sentido que mais te aprouver
e não te assustes, porque há na cesura o encontro
com as partes. O que desaba não é a tradição
mas o fabrico do passado. Cerceia a eito
o monstro pela raiz e, caso eles te cuspam
adianta, arreganhando os dentes, a mordidela.
Se te faltar força, descansa o braço, repousa
o olho com que escutas o princípio. E de volta
ao dispor ambos os pés sobre as arestas do pedestal
tem cautela. Não é a tradição que desaba, ou a lisura
mas é muito o que descamba. Há quantas palavras
afinal, firmaram eles as pautas e a praxe?
Agora que deste a espalda à peleja e o coração
à demanda, percebes como o golpe prediz a borda
vária e desconhecida, da máquina, que à máquina
sucederão a boca e as línguas, o gesto e os corpos
em meia-luz. Ao desígnio da invenção seguirá
por seu turno, a vida. E, como um susto, a vida
não se prevê. Cabeleiras, grinaldas e dorsos rolarão
porque à história agradam as piruetas, para o museu
das coisas amorfas. Augúrios de lado, o canto faz-se
de ouvido pregado à terra. Verga-te, por isso, até
à oscilação vaga e firme do achado. Aprende
tão perto da morte, a toada circular do recomeço
e escuta como, ao tombo estirado dos gigantes de pedra
despontam plantas e grilos num reino de calhaus.
Se falassem, em que tempo do tempo lhes falarias?
PORTUGAL
Visual poem. 2019
Published in Portugal (BUALA, 2020; Impérios, Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa, 2020).
Presented in Mexico (2019), the US (2019) and Portugal (2019)
Visual poem. 2019
Published in Portugal (BUALA, 2020; Impérios, Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa, 2020).
Presented in Mexico (2019), the US (2019) and Portugal (2019)
O que é o FRASQUINHO DE MAR PORTUGUÊS
O FRASQUINHO DE MAR PORTUGUÊS funciona, em termos leigos, como a pastilha de nicotina.
Como usar o FRASQUINHO DE MAR PORTUGUÊS
1. Abra o FRASQUINHO DE MAR PORTUGUÊS.
2. Inale o cheiro possante e característico do mar.
3. Exale o cheiro possante e característico do mar.
O que é a COLÓNIA
O objectivo da COLÓNIA, versão colonial Portuguesa do Monopólio e empenhada homenagem ao mito nacional do Quinto Império, consiste em reconstruir, honrando as especificidades do Tratado de Tordesilhas e do mais tardio Tratado de Madrid, o Império geográfico, religioso e espiritual Português.
Ao contrário do Monopólio, não há perdedores — a COLÓNIA é um jogo de vencedores.
Como jogar a COLÓNIA
1. Estabeleça a ordem das jogadas dos participantes com base no sentido dos ponteiros do relógio.
2. A COLÓNIA não inclui dados. Cada participante decide quantos territórios pretende avançar.
3. Depois de avançar X territórios e parar num território à sua escolha, o jogador deve gritar bem alto:
É MEU!
4. O jogo termina quando todos os territórios estiverem sob o domínio dos participantes.
O objectivo da COLÓNIA, versão colonial Portuguesa do Monopólio e empenhada homenagem ao mito nacional do Quinto Império, consiste em reconstruir, honrando as especificidades do Tratado de Tordesilhas e do mais tardio Tratado de Madrid, o Império geográfico, religioso e espiritual Português.
Ao contrário do Monopólio, não há perdedores — a COLÓNIA é um jogo de vencedores.
Como jogar a COLÓNIA
1. Estabeleça a ordem das jogadas dos participantes com base no sentido dos ponteiros do relógio.
2. A COLÓNIA não inclui dados. Cada participante decide quantos territórios pretende avançar.
3. Depois de avançar X territórios e parar num território à sua escolha, o jogador deve gritar bem alto:
É MEU!
4. O jogo termina quando todos os territórios estiverem sob o domínio dos participantes.
O que é o PAKHYMETRO VATIS
O PAQUÍMETRO DOS VATES acudirá o autor no alcance formal do aprazimento do verso [1] e auxiliar-lo-á a escapar graciosamente aos versos duros, frouxos, monófonos ou cacofónicos.
A perfeição máxima do verso deverá, por documento de instinto poético e bom engenho, corresponder, além de tudo, à sensatez conteudística que, assente na maior cópia de vocábulos em todas as matérias, se distinguirá pela seriedade, delicadeza e cerimónia com que trabalha a universalidade dos temas.
Como usar o PAKHYMETRO VATIS
A coincidência exímia entre a forma e a seriedade conteudística farão do verso um objecto de disputada apreciação.
[1] Ou metro. Trata-se de um ajuntamento de palavras e até, em alguns casos, de uma só palavra, que compreende determinado número de sílabas com uma ou mais pausas de que idealmente — versos há que tendo o número preciso de sílabas destoam ou desiludem apesar da ambição e diligência do versificador — resulta uma cadência agradável.
O PAQUÍMETRO DOS VATES acudirá o autor no alcance formal do aprazimento do verso [1] e auxiliar-lo-á a escapar graciosamente aos versos duros, frouxos, monófonos ou cacofónicos.
A perfeição máxima do verso deverá, por documento de instinto poético e bom engenho, corresponder, além de tudo, à sensatez conteudística que, assente na maior cópia de vocábulos em todas as matérias, se distinguirá pela seriedade, delicadeza e cerimónia com que trabalha a universalidade dos temas.
Como usar o PAKHYMETRO VATIS
A coincidência exímia entre a forma e a seriedade conteudística farão do verso um objecto de disputada apreciação.
[1] Ou metro. Trata-se de um ajuntamento de palavras e até, em alguns casos, de uma só palavra, que compreende determinado número de sílabas com uma ou mais pausas de que idealmente — versos há que tendo o número preciso de sílabas destoam ou desiludem apesar da ambição e diligência do versificador — resulta uma cadência agradável.
O que é o QUEM DESCOBRIU O MUNDO?
A dinâmica reiterativa de QUEM DESCOBRIU O MUNDO? desperta nos que o jogam a confiança e a firmeza a que, no decorrer dos séculos, a Raça Lusitana foi e ainda é naturalmente associada.
O QUEM DESCOBRIU O MUNDO? poderá ser jogado em três versões (A, B e C) que correspondem, respectivamente, a três rodas da sorte diferentes.
A. Roda da sorte EU (ver imagem), para meninos e homens de todas as idades.
B. Roda da sorte NÓS, para meninos e homens de todas as idades.
C. Roda da sorte ELES, para meninas e mulheres de todas as idades.
Como usar o QUEM DESCOBRIU O MUNDO?
1. O QUEM DESCOBRIU O MUNDO? pode ser jogado individualmente ou em grupo.
2. Antes de fazer girar as conhecidas rodas do EU, NÓS e ELES, cada participante deverá gritar a plenos pulmões:
QUEM DESCOBRIU O MUNDO?
A dinâmica reiterativa de QUEM DESCOBRIU O MUNDO? desperta nos que o jogam a confiança e a firmeza a que, no decorrer dos séculos, a Raça Lusitana foi e ainda é naturalmente associada.
O QUEM DESCOBRIU O MUNDO? poderá ser jogado em três versões (A, B e C) que correspondem, respectivamente, a três rodas da sorte diferentes.
A. Roda da sorte EU (ver imagem), para meninos e homens de todas as idades.
B. Roda da sorte NÓS, para meninos e homens de todas as idades.
C. Roda da sorte ELES, para meninas e mulheres de todas as idades.
Como usar o QUEM DESCOBRIU O MUNDO?
1. O QUEM DESCOBRIU O MUNDO? pode ser jogado individualmente ou em grupo.
2. Antes de fazer girar as conhecidas rodas do EU, NÓS e ELES, cada participante deverá gritar a plenos pulmões:
QUEM DESCOBRIU O MUNDO?
O que é o CORAÇÃO DE D. PEDRO I VERSÃO PELÚCIA
Réplica felpuda, em fibras sintéticas e outros têxteis, do coração[1] de D. Pedro IV e Imperador do Brasil D. Pedro I.
Como usar o CORAÇÃO DE D. PEDRO I VERSÃO PELÚCIA
As funções decorativas ou emocionais do CORAÇÃO DE D. PEDRO I VERSÃO PELÚCIA variarão conforme a intenção ou necessidades do proprietário.
[1] Preservado desde da sua morte em 1834.
Réplica felpuda, em fibras sintéticas e outros têxteis, do coração[1] de D. Pedro IV e Imperador do Brasil D. Pedro I.
Como usar o CORAÇÃO DE D. PEDRO I VERSÃO PELÚCIA
As funções decorativas ou emocionais do CORAÇÃO DE D. PEDRO I VERSÃO PELÚCIA variarão conforme a intenção ou necessidades do proprietário.
[1] Preservado desde da sua morte em 1834.
NÃO
Videopoem. 2020
TEXT, ANIMATION, AND MUSIC Patrícia Lino
Published in Sweden (Língua-Lugar, 2021)
Videopoem. 2020
TEXT, ANIMATION, AND MUSIC Patrícia Lino
Published in Sweden (Língua-Lugar, 2021)
PATRÍCIA LINO. AUTORRETRATO COM FUTURO. 2021.
TEXT, VIDEO, ANIMATION, VOICE AND MUSIC Patrícia Lino
Published in Brazil (Ouriço, 2021)
Screened in the US, Brazil, Portugal, and Spain
PATRÍCIA LINO. ELA. 2022
POEM Maria Firmina dos Reis
VIDEO, ANIMATION, VOICE AND MUSIC Patrícia Lino
Exhibited in FLIP — Festival Literário Internacional de Paraty
Brasil. November 2022
PATRÍCIA LINO. ROUPA DE DOMINGO
Trailer. 2022
SELECTION Conceição Lino
VIDEO, ANIMATION, MUSIC, AND VOICE Patrícia Lino
Exhibited in Universidade de Vigo
Spain. October 2022
QUANDO ELES DIZEM QUE NÃO GOSTAM DOS POEMAS
Eu lamento tudo chorando e gemendo, arranco os cabelos
arrasto-me pelas ruas da cidade, fumo consideravelmente
mais, arranho braços e pernas, exagero nas bebidas e nos
amores, perco o apetite, peso e músculo, esperança e brio.
Isto, oh, para não falar de como não escrevo rigorosamente
nada, durante dias, carpindo e lamuriando, como um cão
aflito e desgostoso, até lentamente desembocar, tombada
junto às bravas ondas do Pacífico, onde pergunto, quase
gritando, como Ulisses perguntou às gaivotas de Ogígia:
— Gaivotas, porquê eu, porquê eu?
eu patrícia lino de águas santas porto portugal mulher dedicadíssima
aos fazeres de uma vida socialmente inútil nímia & ilustre observadora
do dia a dia intranscendente pertenço à geração moça irreal + hype
de um país onde não vivo que me estranha e obriga à recusa do bonito
exercício ensimesmado dos meus contemporâneos eu patrícia donzela
das ideias em pé engoli prolífica o verso arbitrário e o coro apessoado
e não cumprirei as regras não beberei do lindo cálice até à palmadinha
sórdida na nuca trigueira ao aplauso inchado das belas massas agitadas
eu lino seguro sobre estas ancas endiabradas um punhal brilhante único
e o espanto apocalíptico de que não há quem me livre desta fome histórica
AMOR TRANSATLÂNTICO
Diz-lhe que volto hoje para casa.
Assim que chegar, pulando o portão
depois da alegria desenfreada dos cães
baterei à porta. Uma sílaba gigante.
Olhar-me-á com espanto, envelhecemos
as duas, tão depressa. Mãe.
Diz-lhe que volto amanhã para casa
e que a California me atrasou.
Assim que chegar, tocando à campainha
depois da alegria desenfreada dos cães
ela abrirá a porta. Uma sílaba tremenda.
Mãe. Toca-me sempre o rosto três vezes
para ver se existo. Não existo.
Diz-lhe que volto para casa mês que vem
e que a América do Sul me atrasou.
Ela estará à minha espera, sorrindo:
entre a alegria desenfreada dos cães
perguntará pelo que vi e escrevi.
São Paulo, Santiago, Bogotá
mil engenhos verbais, estudos
anatómicos, ruidosos, atómicos.
Sílaba extensa, um amor transatlântico.
“Não há vida para tantos incêndios”
dirá a mãe. “Poemas, talvez”.
Diz-lhe que volto para casa ano que vem
e que as palavras me atrasaram.
AXÉ, MUNDO
Foi com as mãos curtas e besuntadas
que agarrámos a juventude. Ariscos
propensos ao tombo, lambíamos
com pressa e língua, o amor e os quadris.
O que julgávamos ser o amor, pisava:
bota imunda, grosseira, tão enorme
surra. Não sabíamos, não era tempo
que o corpo endura e sói reinventar-se
esplêndido, como um animal liberto.
Tampouco imaginávamos que, então
moído, o coração se dilataria como uma praia.
E depois vieram o golpe, um bramido
de sereia, aliciante, brutal, e a febre.
De nada nos valeram as tisanas, sequer
o intelecto a poucos, esparsos metros
da desgraça. A carne chupava-se toda
sem soluçar, até ao tutano. Muito rápido
viramos carcaça, um traste sem forma e
bracejando, numa briga cortante e acesa
com a ruindade, perdemos a mão e a vara.
Quanto pavor da apressada bagunça, da
burla, do irreparável fracasso apontado à garganta.
Foi quando cedemos. A queda pela manhã.
Não sabíamos, não tínhamos como saber
que o amor, rasteiro e simples, aplacava
a fome, que mais tarde o aprenderíamos
como aprendemos o verbo. E a obstinada
triste perna, estremecendo ao tropeçar
não deixou de conduzir este braço que
surgido da tal escuridão, quis acenar
cinicamente ao mundo. Axé, mundo
quantas manhas mais me trarás ainda?
E o mundo soprou até à casa de onde sorríamos.
Foi quando cantámos. A gentil melodia
a abrir-se toda como ondas às palavras
colhendo umas, rechaçando outras, a vida
estirando-se ao sol, comprida, e o corpo
ao redor dela, a pô-la no regaço. Afinal
a alegria, que chega inteira, não esmaga.
O canto, essa violência afetuosa, crescerá
e eu crescerei, dançando só, ao tactear
às escuras a vida no verso designado
e ardente. Noto como caibo e entro, enfim
no fazer e na solidão. E é então que compreendo.
MARTINA
1. Há até uma certa alegria. Sol, água, vinho.
Dois pulmões impuros & plenos, a pele sana
um banco onde dispor as duas pernas esguias
assim como as catástrofes da existência social
sobretudo doméstica. Toalhas limpas, um teto
e a vida parece estar toda, toda muito certa
mas onde está, onde está a linha negra
que Martina carregava debaixo dos olhos?
2. É devagar que desempenho todas as coisas
práticas. Tenho muita dificuldade em lidar
com o sustentável. A minha infame tragédia
que não é tragédia nenhuma, seria cómica
se não fosse terna. E há tanta ternura por
Martina, que vive tão longe, e acorda
quando me deito.
3. Haveria tanto a dizer-lhe. Olá, tudo
bem. Que gosto muito do Ron Padgett.
Que o correio nunca se atrasa. Que há
um vizinho que faz karaté. Los Angeles.
Um nó. O meu futuro cão. Duas sílabas.
Como é bonito o meu novo cactus e que
tudo, tudo está evidentemente muito certo
mas onde está, onde está a vida
com Martina?
4. Não há então maneira de adormecer
com a cabeça sobre o seu ventre mudo
e inteiro, que até ao repouso e à luz
estremecia, oh, quase tanto como as palavras?
oh-uh-ah-oh-uh-ah-ah, gemia, ah-uh-oh, ah,
ela, eu, gemia, ela, e agora, e agora
oh-ah-uh onde estão, onde estão o corpo
e as mãos de Martina?
5. Escrevi algures que os cabelos de Martina
são como os de Nausícaa, princesa dos Feaces
caminhando para fora dos bosques. Uma imagem
poética, é certo, quase sublime. E completamente
inútil. O amor impõe à memória o cheiro e o tato
mas por que iria a princesa dos Feaces lembrar-se
de mim? A morte, é claro, vem adiar o amor (oh,
o amor) e há tanta roupa por lavar
e até uma certa alegria.
Quero um samba de raiz o busto do Leão
Hebreu 5k de Kavafy Vertov até à falta de visão
Quero muito escrever um conto sobre baratas
que apareça outro gato desgrenhado numa caixa de batatas
ao chegar ao teu parque de estacionamento
Quero dezoito acordes de violino e uma hora de esclarecimento
numa pastelaria com wi-fi sobre a teoria das cordas
Quero que todos saibam que eu quero saber como é quando acordas
Quero uma taça de gelatina duas colheres metálicas
o cheiro das tuas orelhas numa tarde farta de dálias
Quero muito as tuas mãos pequenas sobre a minha testa
um beijo húmido à entrada da casa e outro à saída da festa
Quero a chávena média o cobertor do lado esquerdo do sofá
dormir quero tanto dormir contigo 250g de açúcar no chá
Quero todos os lugares onde tu estás ou estiveste
que no meu funeral chores mais que todos que rasgues uma veste
Quero ir do Porto ao Haiti e escrever uma epopeia
uma lição um orgasmo um verso um sermão uma ideia
Quero a tua cabeça apenas a tua cabeça nas minhas costas
um pão com manteiga os meus lábios nas tuas unhas tortas
MEU DEUS, QUE EU NUNCA PERCA A TERNURA
Visual poem. 2019
Black pen, 1m x 70cm, the same height as the author
Published in Brazil (Escamandro, 2020)
Published in Portugal and the US (VIRADA, 2020)
Presented in the US (2019), Portugal (2019), and Cape-Verde (2020)
Visual poem. 2019
Black pen, 1m x 70cm, the same height as the author
Published in Brazil (Escamandro, 2020)
Published in Portugal and the US (VIRADA, 2020)
Presented in the US (2019), Portugal (2019), and Cape-Verde (2020)
JE NE SAIS PAS
Não sei
se a Teresa se a Marta
a Teresa é uma roda de samba
a Marta escreve em vidros embaciados
hi there why don’t you give me a call? xxx
Eu porém Patrícia não sei
comprei um lenço arrisquei-me cruzei a porta
e faltei às duas declarando rinite alérgica
Que pena que você não vem etc., etc.
as melhoras, um beijo etc., etc.
Essa rinite vai a durar a vida toda etc., etc.
é melhor parar por aqui etc., etc.
E foi às portas da livraria que fingi
assoar-me tossir tomar de uma golada
o Rinialer e pensei: há ± 2500 anos que ninguém
me ama. I don’t even know how to return a call.
Saldo 0€, telephobia o direito a estar calado,
qualquer coisa assim, trágica, como um peixinho
a treinar respiração dentro de água,
por exemplo:
Não sei
se a Teresa se a Marta
a Teresa é uma roda de samba
a Marta escreve em vidros embaciados
hi there why don’t you give me a call? xxx
Eu porém Patrícia não sei
comprei um lenço arrisquei-me cruzei a porta
e faltei às duas declarando rinite alérgica
Que pena que você não vem etc., etc.
as melhoras, um beijo etc., etc.
Essa rinite vai a durar a vida toda etc., etc.
é melhor parar por aqui etc., etc.
E foi às portas da livraria que fingi
assoar-me tossir tomar de uma golada
o Rinialer e pensei: há ± 2500 anos que ninguém
me ama. I don’t even know how to return a call.
Saldo 0€, telephobia o direito a estar calado,
qualquer coisa assim, trágica, como um peixinho
a treinar respiração dentro de água,
por exemplo:
ACTINIDIA DELICIOSA
A actinidia deliciosa é uma planta trepadeira originária dos bosques do vale do rio Yangtsé. Foi introduzida na Nova Zelândia em 1904.
O kiwi, da actinidia deliciosa, chama-se kiwi por ser, em aspeto, tão similar ao kiwi, ave característica nova-zelandesa, Apteryx da família Apterygidae, que é do tamanho de uma galinha doméstica. Isso eu li na wikipédia.
O kiwi não é um fruto como todos pensam que ele é. Por pensarem isto, todos o depelam antes de comer. O ato de depelar o kiwi é desnecessário. Isto foste tu quem mo disse.
A visão errónea da definição do kiwi faz com que ele seja menos comido e diz muito sobre a raça humana que tanto gosta de depelar como não sabe nada sobre as coisas que a rodeiam. Até porque o pouco que sabe não lhe foi dito por nenhum dos kiwis.
Isto foi o que eu concluí depois da wikipédia e de ti.
A PANTUFA
I
As nossas enormes pantufas tinham orelhas, bocas e dentes
para que desbravássemos o chão, a casa e os pais
e suportássemos com um leão nos dedos o frio português
As pantufas vendem-se no supermercado, são para crianças
(porque os adultos, alguém disse, parecem ridículos com elas)
e o seu preço sobe ou desce a partir do quão exótico o animal é.
Mas nem todas as pantufas têm a forma de um animal, exótico ou não,
e nem todas as crianças têm pantufas, com a forma de um animal ou não.
Nós tivemos um par cada um, cuidámo-lo, crescemos e esquecemo-lo
como esquecemos o conforto do nosso país, da casa e dos pais
por agora desbravarmos outras terras e outros idiomas, estrangeiros,
tu e eu sem um leão nos dedos, com algum azar, solidão e brio.
II
Pantufa vem do francês pantoufle; em inglês diz-se slipper
(do verbo to slip, e lembra slippering, que é um castigo
a chicotadas, reguadas ou chineladas. Atroz, absoluto).
Pantufla, do espanhol, tem entre as fonéticas a mais cheia
e confortável: como devem ser de resto as próprias pantufas
inventadas ninguém sabe ao certo por quem nem quando
e onde. Este, Oeste, século XII. Regalia certamente de poucos
cobiçada talvez por alguns e desconhecida de muitos, a pantufa
mais antiga do que o astrolábio, existe há tanto tempo como a bússola
e há quase tanto tempo como a ambulância. A pantufa não consta
entre os objetos que se levariam hipoteticamente para uma ilha deserta.
A pantufa não salva nem alimenta. Aquece. E como qualquer objeto
III
foi adquirindo ao longo do tempo novas funções e feitios.
No século XXI a pantufa é usada nos desertos dos Estados Unidos: El Paso,
Arizona ou San Diego. Feita à medida de todos os sapatos indocumentados
a pantufa, vendida por mexicanos a mexicanos, cobre as pegadas
dos que, numa mão, carregam os filhos e na outra a garrafa de água.
A garrafa de água, forrada com fita-cola, afasta o sol; evita também o reflexo
do sol no plástico e o disparo de uma AR-15. Não parecem ridículos
os indocumentados ao longo da fronteira. A pantufa, maciça e multiplicada
prediz o número de corpos desaparecidos. As famílias dos mortos jamais
recebem de volta as pantufas. Há por isso quem, além das garrafas forradas
colecione pantufas perto de onde os indocumentados e as indocumentadas tombam.
O debate entre os artistas estadunidenses que trabalham com pantufas e garrafas
é essencialmente estético e inútil: limpar ou não a pantufa antes de colocá-la
no museu? Mas não há nenhuma estética na pantufa, maciça e multiplicada
ao longo da fronteira nos pés dos indocumentados. Não há estética onde não há Deus.
PREOCUPAÇÃO
Cuido saber onde pôr as vírgulas
mas não cuido saber onde pôr-me
Cuido saber onde pôr as vírgulas
mas não cuido saber onde pôr-me
EPITÁFIO
Amei as saias das mulheres
e amei as mulheres
O meu braço translúcido
e plagiotrópico
reescreve a tradição
obliquamente
Chegará ainda o dia em que me elogiarão de torta
e em que eu poderei finalmente dizer
Que dores terríveis de costas
Meu deus, faz com que eu seja sempre uma poeta
terrena
Tudo
menos babaca
Nasci a 20km do Rio Douro
e hoje molho os pézinhos no Pacífico
Quem vai dizer de onde sou
depois de tantos ímanes
no frigorífico?
NO RINGUE COM A MUSA
A multidão gritou
o árbitro contou até três
a campainha soou
ela não veio
AULA DE MÚSICA Héracles chegou atrasado carregando a lira pelo jugo. Expirava furioso ao pousá-la sobre o colo quando Lino o repreendeu. Héracles endireitou-se e repetindo os gestos dos companheiros tocou o primeiro acorde. A lira vibrava em desespero Orfeu e Tâmiris suspiraram. Lino interrompeu a pequena orquestra e depois de encaminhar-se sorridente para Héracles acomodou-lhe os enormes e desastrosos dedos entre as seis cordas. Pediu-lhe que tocasse de novo. Héracles tocou. Lino, filho de Urânia e Apolo inventor da melodia vencedor dos jogos dos Argivos o primeiro a cantar ao som da harpa moveu então para cima o indicador mastodôntico do filho de Zeus sem antecipar porém que o estudante se levantaria. Héracles levantou-se, o professor encolheu-se perante o seu braço musculado erguendo a pequena lira no ar. Lino pôde soltar três lamentos inaudíveis até que Héracles o esmagasse. Orfeu e Tâmiris correram em seu socorro lira e cabeça abertas ao meio pois não perde sempre a delicadeza para a força bruta? E a Grécia chorava. |
OUTROS PROBLEMAS DA POESIA Não me leva a jantar fora, tampouco me traz o amor do pai E são poucos os que gostam dela praticamente nenhuns menos ainda os que a entendem ou os que escrevem para melhor entendê-la Entre os três estimo sobretudo os últimos porque mais prescindível do que escrever poesia é escrever sobre ela Não vem quando lhe peço nem vai quando lhe digo jamais dará conta do meu desaparecimento porque ela existe para si como a negação positiva de si mesma transando unicamente com o irregular Não viverei mais por escrevê-la, ela não nos salvará do mau fígado, do melanoma, do acidente nem pagará a gasolina, muito menos a renda E são realmente poucos os que gostam menos do que os que fingem lê-la Mas ela é o baque o preço irreparável da beleza porque a beleza nos custa quase tudo menos a teimosia do canto e a óbvia tão grande queda para o humor |