ALFABETIZAR OS CLÁSSICOS
E OS JURÁSSICOS TAMBÉM
E OS JURÁSSICOS TAMBÉM
POR FAVOR,
NÃO FOTOGRAFE NEM FILME
A LEITURA PERFORMÁTICA.
MUITO OBRIGADA.
A LUTA ENDIABRADA DE UM BRAÇO
Tenho tanto medo de partir um braço sobretudo o esquerdo, e tornar-me absolutamente inútil. Como errar o mundo sem errar a gramática? E como errar a gramática sem um braço? Especialmente o esquerdo danado e pungente, um bastão feminino empenhadíssimo em dizer a história natural no país dos cordiais? Dizer a história natural é errar a gramática e errar a gramática é errar o sujeito regressar ao início dos inícios do planeta à primeira casca de banana, tropeçar no primeiro dos murros, escancarar-se através da luta endiabrada de um braço gago e engasgado, mínimo, pateta o membro esguio de um corpo no espaço um desvio promissor até ao presente Ou a canção gigante PAELLA Cortando os tomates do almoço solarengo de domingo que a mãe lhe ensinou a cozinhar sob a asa e os risos de San Juan, para onde a dona Guadalupe se mudou depois de o marido morrer há cinco compridos anos e onde frequentou, às sextas, um curso grátis de escrita poética, não a outra, porque sempre lhe interessaram mais do que os romancistas, os poetas, que lançam como ela dizia, palavras para a sombra e ficam à espera não se sabe exatamente de quê, de quem, não houvesse valor na escuridão, e onde aprendeu sobre translações totalidade, a beleza do inútil miúdo, que a poesia diz o que ela diz dizendo e que ela é, sem prerrogativas o contrário do que todas as pessoas acham que ela é como um bastão invisível pronto a acertar nos ausentes e operacionais, Mariana bagunça depressa os cabelos e pergunta: — Achas que vale a pena escrever um livro de poemas? Sacudidos os dedos, Maíra começa por cortar o pimentão vermelho, e pensa sem demoras no último livro que leu de Rosario Castellanos, recomendado, há alguns meses por uma amiga de infância, e como gostou também e muito, de Juana de Ibarbourou, como não se esqueceu por vê-la tantas vezes em todos os lugares, da sua rosa vertical e branca, furando discretamente o movimento da própria continuidade, materializando, desse modo a palavra, tão robusta como um martelo especulativo tão reluzente e encarnada como esta verdura, curioso aliás, como tudo continua existindo apesar do mundo grosseiro e implacável, da superfície, e o canto grande o que é exatamente o canto grande senão a insistência em reinventar a vida, os pés sobre a terra, e a terra sobre ambas as mãos, até que se endireita, suspira e responde: — Acho que não. Já há muitos. A MÍMICA DAS ONÇAS Os ameríndios não se moviam como os europeus, porque tinham o poder de ser onças. Onçar. Isto incomodava muito os europeus, que caminhavam de um modo sério e estreito. Mas o que incomodava mais os colonos era o silêncio dos ameríndios, que, por terem superpoderes, dispensavam as palavras e sobretudo a escrita. Imitavam, além disso, o modo como os europeus se moviam, porque a artificialidade do movimento, tão distante da destreza animal, lhes parecia muito engraçada. Não havia como responder à mímica das onças, porque a um exercício mímico deve responder-se sempre, como numa breakdance battle, com outro exercício mímico. E os europeus só conheciam as palavras. O exercício mímico vence, de resto, o exercício oratório. Foi por esta razão que o gesto concreto de Diógenes, que soltou um galo na ágora, ultrapassou a ideia comparativa de Platão. Foi também por esta razão que a arte da performance nasceu nas Américas. E é também por esta razão que o humor é uma forma de violência. |
SONETO VELCRO
Safo beijava mulheres. Ah, e Gertrude Stein igual. Eram fufas, sapatonas, lésbias, viragos, gay, viadas e como elas Sontag, Peri Rossi ou Gabriela Mistral. Anne Marie, Elizabeth, Anaïs e Virginia: desviadas para longe dos puretas, filfas, caretas —até ao paraíso. Se Lorde amava do avesso, Lister escrevia cartas para a esquerda. (Orgasmos delirantes). Oh! e o riso de quem fode a liberdade. Aah! com quantas harpas e farpas escrevemos? A quantas de nós, fessureiras se cortou a garganta, os lábios, os dedos, as línguas as preces. Psst, tu aí, livreira: onde fica a prateleira das colas? Oye coqueta, ahí está. Mas onde está na vida? Queremos a vida. Pizarnik, Adrienne, Sôr Juana Inés — tão maravilhosas. E eu aqui, tão agradecida. MANUAL PARA DECAPITAR HERÓIS Achega-te, inala e corta, tal a machadada no que suporta o busto, que quando a cabeça caia te sobre ainda tempo para o entulho. Começa por baixo, no sentido que mais te aprouver e não te assustes, porque há na cesura o encontro com as partes. O que desaba não é a tradição mas o fabrico do passado. Cerceia a eito o monstro pela raiz e, caso eles te cuspam adianta, arreganhando os dentes, a mordidela. Se te faltar força, descansa o braço, repousa o olho com que escutas o princípio. E de volta ao dispor ambos os pés sobre as arestas do pedestal tem cautela. Não é a tradição que desaba, ou a lisura mas é muito o que descamba. Há quantas palavras afinal, firmaram eles as pautas e a praxe? Agora que deste a espalda à peleja e o coração à demanda, percebes como o golpe prediz a borda vária e desconhecida, da máquina, que à máquina sucederão a boca e as línguas, o gesto e os corpos em meia-luz. Ao desígnio da invenção seguirá por seu turno, a vida. E, como um susto, a vida não se prevê. Cabeleiras, grinaldas e dorsos rolarão porque à história agradam as piruetas, para o museu das coisas amorfas. Augúrios de lado, o canto faz-se de ouvido pregado à terra. Verga-te, por isso, até à oscilação vaga e firme do achado. Aprende tão perto da morte, a toada circular do recomeço e escuta como, ao tombo estirado dos gigantes de pedra despontam plantas e grilos num reino de calhaus. Se falassem, em que tempo do tempo lhes falarias? |
PORTUGAL
Visual poem. 2019
Published in Portugal (BUALA, 2020; Impérios, Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa, 2020).
Presented in Mexico (2019), the US (2019) and Portugal (2019)
Visual poem. 2019
Published in Portugal (BUALA, 2020; Impérios, Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa, 2020).
Presented in Mexico (2019), the US (2019) and Portugal (2019)
PIXO
Visual poem. 2020
Visual poem calked from the pichação made on the group sculpture of Priest António Vieira and three Amerindian children. June 2020. Original photo by Marco Fidalgo.
This group sculpture was built and installed in Lisbon by Câmara Municipal de Lisboa in 2017. In June of 2020, an anonymous group of people intervened in the same group sculpture by covering António Vieira's face, drawing three hearts over the chests of the Amerindian children, and writing on the bottom of the group sculpture "DESCOLONIZA" (decolonize).
NÃO
Videopoem. 2020
TEXT, ANIMATION, AND MUSIC Patrícia Lino
Published in Sweden (Língua-Lugar, 2021)
Videopoem. 2020
TEXT, ANIMATION, AND MUSIC Patrícia Lino
Published in Sweden (Língua-Lugar, 2021)
PATRÍCIA LINO. AUTORRETRATO COM FUTURO. 2021.
TEXT, VIDEO, ANIMATION, VOICE AND MUSIC Patrícia Lino
Published in Brazil (Ouriço, 2021)
Screened in the US, Brazil, Portugal, and Spain
PATRÍCIA LINO. ELA. 2022
POEM Maria Firmina dos Reis
VIDEO, ANIMATION, VOICE AND MUSIC Patrícia Lino
Exhibited in FLIP — Festival Literário Internacional de Paraty
Brasil. November 2022
PATRÍCIA LINO. ROUPA DE DOMINGO
Trailer. 2022
SELECTION Conceição Lino
VIDEO, ANIMATION, MUSIC, AND VOICE Patrícia Lino
Exhibited in Universidade de Vigo
Spain. October 2022
QUANDO ELES DIZEM QUE NÃO GOSTAM DOS POEMAS Eu lamento tudo chorando e gemendo, arranco os cabelos arrasto-me pelas ruas da cidade, fumo consideravelmente mais, arranho braços e pernas, exagero nas bebidas e nos amores, perco o apetite, peso e músculo, esperança e brio. Isto, oh, para não falar de como não escrevo rigorosamente nada, durante dias, carpindo e lamuriando, como um cão aflito e desgostoso, até lentamente desembocar, tombada junto às bravas ondas do Pacífico, onde pergunto, quase gritando, como Ulisses perguntou às gaivotas de Ogígia: — Gaivotas, porquê eu, porquê eu? eu patrícia lino de águas santas porto portugal mulher dedicadíssima aos fazeres de uma vida socialmente inútil nímia & ilustre observadora do dia a dia intranscendente pertenço à geração moça irreal + hype de um país onde não vivo que me estranha e obriga à recusa do bonito exercício ensimesmado dos meus contemporâneos eu patrícia donzela das ideias em pé engoli prolífica o verso arbitrário e o coro apessoado e não cumprirei as regras não beberei do lindo cálice até à palmadinha sórdida na nuca trigueira ao aplauso inchado das belas massas agitadas eu lino seguro sobre estas ancas endiabradas um punhal brilhante único e o espanto apocalíptico de que não há quem me livre desta fome histórica AMOR TRANSATLÂNTICO Diz-lhe que volto hoje para casa. Assim que chegar, pulando o portão depois da alegria desenfreada dos cães baterei à porta. Uma sílaba gigante. Olhar-me-á com espanto, envelhecemos as duas, tão depressa. Mãe. Diz-lhe que volto amanhã para casa e que a California me atrasou. Assim que chegar, tocando à campainha depois da alegria desenfreada dos cães ela abrirá a porta. Uma sílaba tremenda. Mãe. Toca-me sempre o rosto três vezes para ver se existo. Não existo. Diz-lhe que volto para casa mês que vem e que a América do Sul me atrasou. Ela estará à minha espera, sorrindo: entre a alegria desenfreada dos cães perguntará pelo que vi e escrevi. São Paulo, Santiago, Bogotá mil engenhos verbais, estudos anatómicos, ruidosos, atómicos. Sílaba extensa, um amor transatlântico. “Não há vida para tantos incêndios” dirá a mãe. “Poemas, talvez”. Diz-lhe que volto para casa ano que vem e que as palavras me atrasaram. |
AXÉ, MUNDO Foi com as mãos curtas e besuntadas que agarrámos a juventude. Ariscos propensos ao tombo, lambíamos com pressa e língua, o amor e os quadris. O que julgávamos ser o amor, pisava: bota imunda, grosseira, tão enorme surra. Não sabíamos, não era tempo que o corpo endura e sói reinventar-se esplêndido, como um animal liberto. Tampouco imaginávamos que, então moído, o coração se dilataria como uma praia. E depois vieram o golpe, um bramido de sereia, aliciante, brutal, e a febre. De nada nos valeram as tisanas, sequer o intelecto a poucos, esparsos metros da desgraça. A carne chupava-se toda sem soluçar, até ao tutano. Muito rápido viramos carcaça, um traste sem forma e bracejando, numa briga cortante e acesa com a ruindade, perdemos a mão e a vara. Quanto pavor da apressada bagunça, da burla, do irreparável fracasso apontado à garganta. Foi quando cedemos. A queda pela manhã. Não sabíamos, não tínhamos como saber que o amor, rasteiro e simples, aplacava a fome, que mais tarde o aprenderíamos como aprendemos o verbo. E a obstinada triste perna, estremecendo ao tropeçar não deixou de conduzir este braço que surgido da tal escuridão, quis acenar cinicamente ao mundo. Axé, mundo quantas manhas mais me trarás ainda? E o mundo soprou até à casa de onde sorríamos. Foi quando cantámos. A gentil melodia a abrir-se toda como ondas às palavras colhendo umas, rechaçando outras, a vida estirando-se ao sol, comprida, e o corpo ao redor dela, a pô-la no regaço. Afinal a alegria, que chega inteira, não esmaga. O canto, essa violência afetuosa, crescerá e eu crescerei, dançando só, ao tactear às escuras a vida no verso designado e ardente. Noto como caibo e entro, enfim no fazer e na solidão. E é então que compreendo. |
MARTINA 1. Há até uma certa alegria. Sol, água, vinho. Dois pulmões impuros & plenos, a pele sana um banco onde dispor as duas pernas esguias assim como as catástrofes da existência social sobretudo doméstica. Toalhas limpas, um teto e a vida parece estar toda, toda muito certa mas onde está, onde está a linha negra que Martina carregava debaixo dos olhos? 2. É devagar que desempenho todas as coisas práticas. Tenho muita dificuldade em lidar com o sustentável. A minha infame tragédia que não é tragédia nenhuma, seria cómica se não fosse terna. E há tanta ternura por Martina, que vive tão longe, e acorda quando me deito. 3. Haveria tanto a dizer-lhe. Olá, tudo bem. Que gosto muito do Ron Padgett. Que o correio nunca se atrasa. Que há um vizinho que faz karaté. Los Angeles. Um nó. O meu futuro cão. Duas sílabas. Como é bonito o meu novo cactus e que tudo, tudo está evidentemente muito certo mas onde está, onde está a vida com Martina? 4. Não há então maneira de adormecer com a cabeça sobre o seu ventre mudo e inteiro, que até ao repouso e à luz estremecia, oh, quase tanto como as palavras? oh-uh-ah-oh-uh-ah-ah, gemia, ah-uh-oh, ah, ela, eu, gemia, ela, e agora, e agora oh-ah-uh onde estão, onde estão o corpo e as mãos de Martina? 5. Escrevi algures que os cabelos de Martina são como os de Nausícaa, princesa dos Feaces caminhando para fora dos bosques. Uma imagem poética, é certo, quase sublime. E completamente inútil. O amor impõe à memória o cheiro e o tato mas por que iria a princesa dos Feaces lembrar-se de mim? A morte, é claro, vem adiar o amor (oh, o amor) e há tanta roupa por lavar e até uma certa alegria. Quero um samba de raiz o busto do Leão Hebreu 5k de Kavafy Vertov até à falta de visão Quero muito escrever um conto sobre baratas que apareça outro gato desgrenhado numa caixa de batatas ao chegar ao teu parque de estacionamento Quero dezoito acordes de violino e uma hora de esclarecimento numa pastelaria com wi-fi sobre a teoria das cordas Quero que todos saibam que eu quero saber como é quando acordas Quero uma taça de gelatina duas colheres metálicas o cheiro das tuas orelhas numa tarde farta de dálias Quero muito as tuas mãos pequenas sobre a minha testa um beijo húmido à entrada da casa e outro à saída da festa Quero a chávena média o cobertor do lado esquerdo do sofá dormir quero tanto dormir contigo 250g de açúcar no chá Quero todos os lugares onde tu estás ou estiveste que no meu funeral chores mais que todos que rasgues uma veste Quero ir do Porto ao Haiti e escrever uma epopeia uma lição um orgasmo um verso um sermão uma ideia Quero a tua cabeça apenas a tua cabeça nas minhas costas um pão com manteiga os meus lábios nas tuas unhas tortas |
MEU DEUS, QUE EU NUNCA PERCA A TERNURA
Visual poem. 2019
Black pen, 1m x 70cm, the same height as the author
Published in Brazil (Escamandro, 2020)
Published in Portugal and the US (VIRADA, 2020)
Presented in the US (2019), Portugal (2019), and Cape-Verde (2020)
Visual poem. 2019
Black pen, 1m x 70cm, the same height as the author
Published in Brazil (Escamandro, 2020)
Published in Portugal and the US (VIRADA, 2020)
Presented in the US (2019), Portugal (2019), and Cape-Verde (2020)
JE NE SAIS PAS
Não sei
se a Teresa se a Marta
a Teresa é uma roda de samba
a Marta escreve em vidros embaciados
hi there why don’t you give me a call? xxx
Eu porém Patrícia não sei
comprei um lenço arrisquei-me cruzei a porta
e faltei às duas declarando rinite alérgica
Que pena que você não vem etc., etc.
as melhoras, um beijo etc., etc.
Essa rinite vai a durar a vida toda etc., etc.
é melhor parar por aqui etc., etc.
E foi às portas da livraria que fingi
assoar-me tossir tomar de uma golada
o Rinialer e pensei: há ± 2500 anos que ninguém
me ama. I don’t even know how to return a call.
Saldo 0€, telephobia o direito a estar calado,
qualquer coisa assim, trágica, como um peixinho
a treinar respiração dentro de água,
por exemplo:
ACTINIDIA DELICIOSA
A actinidia deliciosa é uma planta trepadeira originária dos bosques do vale do rio Yangtsé. Foi introduzida na Nova Zelândia em 1904.
O kiwi, da actinidia deliciosa, chama-se kiwi por ser, em aspeto, tão similar ao kiwi, ave característica nova-zelandesa, Apteryx da família Apterygidae, que é do tamanho de uma galinha doméstica. Isso eu li na wikipédia.
O kiwi não é um fruto como todos pensam que ele é. Por pensarem isto, todos o depelam antes de comer. O ato de depelar o kiwi é desnecessário. Isto foste tu quem mo disse.
A visão errónea da definição do kiwi faz com que ele seja menos comido e diz muito sobre a raça humana que tanto gosta de depelar como não sabe nada sobre as coisas que a rodeiam. Até porque o pouco que sabe não lhe foi dito por nenhum dos kiwis.
Isto foi o que eu concluí depois da wikipédia e de ti.
A PANTUFA
I
As nossas enormes pantufas tinham orelhas, bocas e dentes
para que desbravássemos o chão, a casa e os pais
e suportássemos com um leão nos dedos o frio português
As pantufas vendem-se no supermercado, são para crianças
(porque os adultos, alguém disse, parecem ridículos com elas)
e o seu preço sobe ou desce a partir do quão exótico o animal é.
Mas nem todas as pantufas têm a forma de um animal, exótico ou não,
e nem todas as crianças têm pantufas, com a forma de um animal ou não.
Nós tivemos um par cada um, cuidámo-lo, crescemos e esquecemo-lo
como esquecemos o conforto do nosso país, da casa e dos pais
por agora desbravarmos outras terras e outros idiomas, estrangeiros,
tu e eu sem um leão nos dedos, com algum azar, solidão e brio.
II
Pantufa vem do francês pantoufle; em inglês diz-se slipper
(do verbo to slip, e lembra slippering, que é um castigo
a chicotadas, reguadas ou chineladas. Atroz, absoluto).
Pantufla, do espanhol, tem entre as fonéticas a mais cheia
e confortável: como devem ser de resto as próprias pantufas
inventadas ninguém sabe ao certo por quem nem quando
e onde. Este, Oeste, século XII. Regalia certamente de poucos
cobiçada talvez por alguns e desconhecida de muitos, a pantufa
mais antiga do que o astrolábio, existe há tanto tempo como a bússola
e há quase tanto tempo como a ambulância. A pantufa não consta
entre os objetos que se levariam hipoteticamente para uma ilha deserta.
A pantufa não salva nem alimenta. Aquece. E como qualquer objeto
III
foi adquirindo ao longo do tempo novas funções e feitios.
No século XXI a pantufa é usada nos desertos dos Estados Unidos: El Paso,
Arizona ou San Diego. Feita à medida de todos os sapatos indocumentados
a pantufa, vendida por mexicanos a mexicanos, cobre as pegadas
dos que, numa mão, carregam os filhos e na outra a garrafa de água.
A garrafa de água, forrada com fita-cola, afasta o sol; evita também o reflexo
do sol no plástico e o disparo de uma AR-15. Não parecem ridículos
os indocumentados ao longo da fronteira. A pantufa, maciça e multiplicada
prediz o número de corpos desaparecidos. As famílias dos mortos jamais
recebem de volta as pantufas. Há por isso quem, além das garrafas forradas
colecione pantufas perto de onde os indocumentados e as indocumentadas tombam.
O debate entre os artistas estadunidenses que trabalham com pantufas e garrafas
é essencialmente estético e inútil: limpar ou não a pantufa antes de colocá-la
no museu? Mas não há nenhuma estética na pantufa, maciça e multiplicada
ao longo da fronteira nos pés dos indocumentados. Não há estética onde não há Deus.
Não sei
se a Teresa se a Marta
a Teresa é uma roda de samba
a Marta escreve em vidros embaciados
hi there why don’t you give me a call? xxx
Eu porém Patrícia não sei
comprei um lenço arrisquei-me cruzei a porta
e faltei às duas declarando rinite alérgica
Que pena que você não vem etc., etc.
as melhoras, um beijo etc., etc.
Essa rinite vai a durar a vida toda etc., etc.
é melhor parar por aqui etc., etc.
E foi às portas da livraria que fingi
assoar-me tossir tomar de uma golada
o Rinialer e pensei: há ± 2500 anos que ninguém
me ama. I don’t even know how to return a call.
Saldo 0€, telephobia o direito a estar calado,
qualquer coisa assim, trágica, como um peixinho
a treinar respiração dentro de água,
por exemplo:
ACTINIDIA DELICIOSA
A actinidia deliciosa é uma planta trepadeira originária dos bosques do vale do rio Yangtsé. Foi introduzida na Nova Zelândia em 1904.
O kiwi, da actinidia deliciosa, chama-se kiwi por ser, em aspeto, tão similar ao kiwi, ave característica nova-zelandesa, Apteryx da família Apterygidae, que é do tamanho de uma galinha doméstica. Isso eu li na wikipédia.
O kiwi não é um fruto como todos pensam que ele é. Por pensarem isto, todos o depelam antes de comer. O ato de depelar o kiwi é desnecessário. Isto foste tu quem mo disse.
A visão errónea da definição do kiwi faz com que ele seja menos comido e diz muito sobre a raça humana que tanto gosta de depelar como não sabe nada sobre as coisas que a rodeiam. Até porque o pouco que sabe não lhe foi dito por nenhum dos kiwis.
Isto foi o que eu concluí depois da wikipédia e de ti.
A PANTUFA
I
As nossas enormes pantufas tinham orelhas, bocas e dentes
para que desbravássemos o chão, a casa e os pais
e suportássemos com um leão nos dedos o frio português
As pantufas vendem-se no supermercado, são para crianças
(porque os adultos, alguém disse, parecem ridículos com elas)
e o seu preço sobe ou desce a partir do quão exótico o animal é.
Mas nem todas as pantufas têm a forma de um animal, exótico ou não,
e nem todas as crianças têm pantufas, com a forma de um animal ou não.
Nós tivemos um par cada um, cuidámo-lo, crescemos e esquecemo-lo
como esquecemos o conforto do nosso país, da casa e dos pais
por agora desbravarmos outras terras e outros idiomas, estrangeiros,
tu e eu sem um leão nos dedos, com algum azar, solidão e brio.
II
Pantufa vem do francês pantoufle; em inglês diz-se slipper
(do verbo to slip, e lembra slippering, que é um castigo
a chicotadas, reguadas ou chineladas. Atroz, absoluto).
Pantufla, do espanhol, tem entre as fonéticas a mais cheia
e confortável: como devem ser de resto as próprias pantufas
inventadas ninguém sabe ao certo por quem nem quando
e onde. Este, Oeste, século XII. Regalia certamente de poucos
cobiçada talvez por alguns e desconhecida de muitos, a pantufa
mais antiga do que o astrolábio, existe há tanto tempo como a bússola
e há quase tanto tempo como a ambulância. A pantufa não consta
entre os objetos que se levariam hipoteticamente para uma ilha deserta.
A pantufa não salva nem alimenta. Aquece. E como qualquer objeto
III
foi adquirindo ao longo do tempo novas funções e feitios.
No século XXI a pantufa é usada nos desertos dos Estados Unidos: El Paso,
Arizona ou San Diego. Feita à medida de todos os sapatos indocumentados
a pantufa, vendida por mexicanos a mexicanos, cobre as pegadas
dos que, numa mão, carregam os filhos e na outra a garrafa de água.
A garrafa de água, forrada com fita-cola, afasta o sol; evita também o reflexo
do sol no plástico e o disparo de uma AR-15. Não parecem ridículos
os indocumentados ao longo da fronteira. A pantufa, maciça e multiplicada
prediz o número de corpos desaparecidos. As famílias dos mortos jamais
recebem de volta as pantufas. Há por isso quem, além das garrafas forradas
colecione pantufas perto de onde os indocumentados e as indocumentadas tombam.
O debate entre os artistas estadunidenses que trabalham com pantufas e garrafas
é essencialmente estético e inútil: limpar ou não a pantufa antes de colocá-la
no museu? Mas não há nenhuma estética na pantufa, maciça e multiplicada
ao longo da fronteira nos pés dos indocumentados. Não há estética onde não há Deus.
PREOCUPAÇÃO
Cuido saber onde pôr as vírgulas
mas não cuido saber onde pôr-me
Cuido saber onde pôr as vírgulas
mas não cuido saber onde pôr-me
EPITÁFIO
Amei as saias das mulheres
e amei as mulheres
O meu braço translúcido
e plagiotrópico
reescreve a tradição
obliquamente
Chegará ainda o dia em que me elogiarão de torta
e em que eu poderei finalmente dizer
Que dores terríveis de costas
Meu deus, faz com que eu seja sempre uma poeta
terrena
Tudo
menos babaca
Nasci a 20km do Rio Douro
e hoje molho os pézinhos no Pacífico
Quem vai dizer de onde sou
depois de tantos ímanes
no frigorífico?
NO RINGUE COM A MUSA
A multidão gritou
o árbitro contou até três
a campainha soou
ela não veio
AULA DE MÚSICA Héracles chegou atrasado carregando a lira pelo jugo. Expirava furioso ao pousá-la sobre o colo quando Lino o repreendeu. Héracles endireitou-se e repetindo os gestos dos companheiros tocou o primeiro acorde. A lira vibrava em desespero Orfeu e Tâmiris suspiraram. Lino interrompeu a pequena orquestra e depois de encaminhar-se sorridente para Héracles acomodou-lhe os enormes e desastrosos dedos entre as seis cordas. Pediu-lhe que tocasse de novo. Héracles tocou. Lino, filho de Urânia e Apolo inventor da melodia vencedor dos jogos dos Argivos o primeiro a cantar ao som da harpa moveu então para cima o indicador mastodôntico do filho de Zeus sem antecipar porém que o estudante se levantaria. Héracles levantou-se, o professor encolheu-se perante o seu braço musculado erguendo a pequena lira no ar. Lino pôde soltar três lamentos inaudíveis até que Héracles o esmagasse. Orfeu e Tâmiris correram em seu socorro lira e cabeça abertas ao meio pois não perde sempre a delicadeza para a força bruta? E a Grécia chorava. |
OUTROS PROBLEMAS DA POESIA Não me leva a jantar fora, tampouco me traz o amor do pai E são poucos os que gostam dela praticamente nenhuns menos ainda os que a entendem ou os que escrevem para melhor entendê-la Entre os três estimo sobretudo os últimos porque mais prescindível do que escrever poesia é escrever sobre ela Não vem quando lhe peço nem vai quando lhe digo jamais dará conta do meu desaparecimento porque ela existe para si como a negação positiva de si mesma transando unicamente com o irregular Não viverei mais por escrevê-la, ela não nos salvará do mau fígado, do melanoma, do acidente nem pagará a gasolina, muito menos a renda E são realmente poucos os que gostam menos do que os que fingem lê-la Mas ela é o baque o preço irreparável da beleza porque a beleza nos custa quase tudo menos a teimosia do canto e a óbvia tão grande queda para o humor |