PATRICIA LINO
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ALFABETIZAR OS CLÁSSICOS
​E OS JURÁSSICOS TAMBÉM








POR FAVOR,
NÃO FOTOGRAFE NEM FILME
​A LEITURA PERFORMÁTICA.

MUITO OBRIGADA.

















​


A LUTA ENDIABRADA DE UM BRAÇO
 
Tenho tanto medo de partir um braço
sobretudo o esquerdo, e tornar-me
absolutamente inútil. Como errar o mundo
sem errar a gramática? E como errar a gramática
sem um braço? Especialmente o esquerdo
danado e pungente, um bastão feminino
empenhadíssimo em dizer a história natural
no país dos cordiais?
 
Dizer a história natural é errar a gramática
e errar a gramática é errar o sujeito
regressar ao início dos inícios do planeta
à primeira casca de banana, tropeçar
no primeiro dos murros, escancarar-se
através da luta endiabrada de um braço
gago e engasgado, mínimo, pateta
 
o membro esguio de um corpo no espaço
um desvio promissor até ao presente
 
Ou a canção gigante
 






PAELLA

Cortando os tomates do almoço solarengo de domingo
que a mãe lhe ensinou a cozinhar sob a asa e os risos 
de San Juan, para onde a dona Guadalupe se mudou 
depois de o marido morrer há cinco compridos anos
e onde frequentou, às sextas, um curso grátis de escrita 
poética, não a outra, porque sempre lhe interessaram
mais do que os romancistas, os poetas, que lançam
como ela dizia, palavras para a sombra e ficam à espera
não se sabe exatamente de quê, de quem, não houvesse 
valor na escuridão, e onde aprendeu sobre translações
totalidade, a beleza do inútil miúdo, que a poesia diz 
o que ela diz dizendo e que ela é, sem prerrogativas
o contrário do que todas as pessoas acham que ela é 
como um bastão invisível pronto a acertar nos ausentes
e operacionais, Mariana bagunça depressa os cabelos 
e pergunta:


— Achas que vale a pena escrever um livro de poemas?

​​
Sacudidos os dedos, Maíra começa por cortar o pimentão
vermelho, e pensa sem demoras no último livro que leu
de Rosario Castellanos, recomendado, há alguns meses
por uma amiga de infância, e como gostou também 
e muito, de Juana de Ibarbourou, como não se esqueceu
por vê-la tantas vezes em todos os lugares, da sua rosa
vertical e branca, furando discretamente o movimento 
da própria continuidade, materializando, desse modo
a palavra, tão robusta como um martelo especulativo
tão reluzente e encarnada como esta verdura, curioso
aliás, como tudo continua existindo apesar do mundo
grosseiro e implacável, da superfície, e o canto grande
o que é exatamente o canto grande senão a insistência
em reinventar a vida, os pés sobre a terra, e a terra 
sobre ambas as mãos, até que se endireita, suspira
e responde:


— Acho que não. Já há muitos.









A MÍMICA DAS ONÇAS
 
Os ameríndios não se moviam como os europeus, porque tinham o poder de ser onças. Onçar. Isto incomodava muito os europeus, que caminhavam de um modo sério e estreito. Mas o que incomodava mais os colonos era o silêncio dos ameríndios, que, por terem superpoderes, dispensavam as palavras e sobretudo a escrita. Imitavam, além disso, o modo como os europeus se moviam, porque a artificialidade do movimento, tão distante da destreza animal, lhes parecia muito engraçada.
 
Não havia como responder à mímica das onças, porque a um exercício mímico deve responder-se sempre, como numa breakdance battle, com outro exercício mímico. E os europeus só conheciam as palavras.
 
O exercício mímico vence, de resto, o exercício oratório. Foi por esta razão que o gesto concreto de Diógenes, que soltou um galo na ágora, ultrapassou a ideia comparativa de Platão.
 
Foi também por esta razão que a arte da performance nasceu nas Américas.
 
E é também por esta razão que o humor é uma forma de violência.

​






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​
SONETO VELCRO

Safo beijava mulheres. Ah, e Gertrude Stein igual.
Eram fufas, sapatonas, lésbias, viragos, gay, viadas
e como elas Sontag, Peri Rossi ou Gabriela Mistral.
​Anne Marie, Elizabeth, Anaïs e Virginia: desviadas

para longe dos puretas, filfas, caretas —até ao paraíso.
Se Lorde amava do avesso, Lister escrevia cartas
para a esquerda. (Orgasmos delirantes). Oh! e o riso
de quem fode a liberdade. Aah! com quantas harpas

e farpas escrevemos? A quantas de nós, fessureiras
se cortou a garganta, os lábios, os dedos, as línguas
as preces. Psst, tu aí, livreira: onde fica a prateleira

das colas? Oye coqueta, ahí está. Mas onde está na vida?
Queremos a vida. Pizarnik, Adrienne, Sôr Juana Inés
— tão maravilhosas. E eu aqui, tão agradecida.


​




​
MANUAL PARA DECAPITAR HERÓIS
 
Achega-te, inala e corta, tal a machadada
no que suporta o busto, que quando a cabeça caia
te sobre ainda tempo para o entulho. Começa
 
por baixo, no sentido que mais te aprouver
e não te assustes, porque há na cesura o encontro
com as partes. O que desaba não é a tradição
mas o fabrico do passado. Cerceia a eito
o monstro pela raiz e, caso eles te cuspam
adianta, arreganhando os dentes, a mordidela.
 
Se te faltar força, descansa o braço, repousa
o olho com que escutas o princípio. E de volta
ao dispor ambos os pés sobre as arestas do pedestal
tem cautela. Não é a tradição que desaba, ou a lisura
mas é muito o que descamba. Há quantas palavras
afinal, firmaram eles as pautas e a praxe?
 
Agora que deste a espalda à peleja e o coração
à demanda, percebes como o golpe prediz a borda
vária e desconhecida, da máquina, que à máquina
sucederão a boca e as línguas, o gesto e os corpos
em meia-luz. Ao desígnio da invenção seguirá
por seu turno, a vida. E, como um susto, a vida
 
não se prevê. Cabeleiras, grinaldas e dorsos rolarão  
porque à história agradam as piruetas, para o museu
das coisas amorfas. Augúrios de lado, o canto faz-se
de ouvido pregado à terra. Verga-te, por isso, até
à oscilação vaga e firme do achado. Aprende
tão perto da morte, a toada circular do recomeço
 
e escuta como, ao tombo estirado dos gigantes de pedra
despontam plantas e grilos num reino de calhaus.
Se falassem, em que tempo do tempo lhes falarias?




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O KIT DE SOBREVIVÊNCIA DO DESCOBRIDOR PORTUGUÊS
NO MUNDO ANTICOLONIAL
​
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PORTUGAL
Visual poem. 2019

Published in Portugal (BUALA, 2020; Impérios, Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa, 2020).
Presented in Mexico (2019), the US (2019) and Portugal (2019)

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​PIXO

Visual poem. 2020

​Visual poem calked from the pichação made on the group sculpture of Priest António Vieira and three Amerindian children. June 2020. Original photo by Marco Fidalgo.

This group sculpture was built and installed in Lisbon by Câmara Municipal de Lisboa in 2017. In June of 2020, an anonymous group of people intervened in the same group sculpture by covering António Vieira's face, drawing three hearts over the chests of the Amerindian children, and writing on the bottom of the group sculpture "DESCOLONIZA" (decolonize). ​



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NÃO
Videopoem. 2020
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TEXT, ANIMATION, AND MUSIC Patrícia Lino

Published in Sweden (Língua-Lugar, 2021)
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PATRÍCIA LINO. AUTORRETRATO COM FUTURO. 2021.

TEXT, VIDEO, ANIMATION, VOICE AND MUSIC Patrícia Lino
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Published in Brazil (Ouriço, 2021)
Screened in the US, Brazil, Portugal, and Spain

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PATRÍCIA LINO. ELA. 2022

POEM Maria Firmina dos Reis
VIDEO, ANIMATION, VOICE AND MUSIC Patrícia Lino

Exhibited in FLIP — Festival Literário Internacional de Paraty
Brasil. November 2022
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PATRÍCIA LINO. ROUPA DE DOMINGO
 Trailer. 2022

SELECTION Conceição Lino
VIDEO, ANIMATION, MUSIC, AND VOICE Patrícia Lino

Exhibited in Universidade de Vigo
Spain. October 2022



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​

​QUANDO ELES DIZEM QUE NÃO GOSTAM DOS POEMAS
 
Eu lamento tudo chorando e gemendo, arranco os cabelos
arrasto-me pelas ruas da cidade, fumo consideravelmente
mais, arranho braços e pernas, exagero nas bebidas e nos
amores, perco o apetite, peso e músculo, esperança e brio.
Isto, oh, para não falar de como não escrevo rigorosamente
nada, durante dias, carpindo e lamuriando, como um cão
aflito e desgostoso, até lentamente desembocar, tombada
junto às bravas ondas do Pacífico, onde pergunto, quase
gritando, como Ulisses perguntou às gaivotas de Ogígia:
 
— Gaivotas, porquê eu, porquê eu?








​
eu patrícia lino de águas santas porto portugal mulher dedicadíssima
aos fazeres de uma vida socialmente inútil nímia & ilustre observadora
do dia a dia intranscendente pertenço à geração moça irreal + hype
de um país onde não vivo que me estranha e obriga à recusa do bonito
exercício ensimesmado dos meus contemporâneos eu patrícia donzela
das ideias em pé engoli prolífica o verso arbitrário e o coro apessoado
e não cumprirei as regras não beberei do lindo cálice até à palmadinha
sórdida na nuca trigueira ao aplauso inchado das belas massas agitadas
eu lino seguro sobre estas ancas endiabradas um punhal brilhante único
e o espanto apocalíptico de que não há quem me livre desta fome histórica







​



AMOR TRANSATLÂNTICO
 
Diz-lhe que volto hoje para casa.
 
Assim que chegar, pulando o portão
depois da alegria desenfreada dos cães
baterei à porta. Uma sílaba gigante.
Olhar-me-á com espanto, envelhecemos
as duas, tão depressa. Mãe.
 
Diz-lhe que volto amanhã para casa
e que a California me atrasou.
 
Assim que chegar, tocando à campainha
depois da alegria desenfreada dos cães
ela abrirá a porta. Uma sílaba tremenda.
Mãe. Toca-me sempre o rosto três vezes
para ver se existo. Não existo.
 
Diz-lhe que volto para casa mês que vem
e que a América do Sul me atrasou.
 
Ela estará à minha espera, sorrindo:
entre a alegria desenfreada dos cães
perguntará pelo que vi e escrevi.
São Paulo, Santiago, Bogotá
mil engenhos verbais, estudos
anatómicos, ruidosos, atómicos.
Sílaba extensa, um amor transatlântico.
“Não há vida para tantos incêndios”
dirá a mãe. “Poemas, talvez”.
 
Diz-lhe que volto para casa ano que vem
e que as palavras me atrasaram.





​​
 


VARIAÇÕES SOBRE A SAUDADE 
​








​

​AXÉ, MUNDO 

Foi com as mãos curtas e besuntadas
que agarrámos a juventude. Ariscos
propensos ao tombo, lambíamos
com pressa e língua, o amor e os quadris.
O que julgávamos ser o amor, pisava:
bota imunda, grosseira, tão enorme
surra. Não sabíamos, não era tempo
que o corpo endura e sói reinventar-se
esplêndido, como um animal liberto.
Tampouco imaginávamos que, então
moído, o coração se dilataria como uma praia.
 
E depois vieram o golpe, um bramido
de sereia, aliciante, brutal, e a febre.
De nada nos valeram as tisanas, sequer
o intelecto a poucos, esparsos metros
da desgraça. A carne chupava-se toda
sem soluçar, até ao tutano. Muito rápido
viramos carcaça, um traste sem forma e
bracejando, numa briga cortante e acesa
com a ruindade, perdemos a mão e a vara.
Quanto pavor da apressada bagunça, da
burla, do irreparável fracasso apontado à garganta.
 
Foi quando cedemos. A queda pela manhã.
Não sabíamos, não tínhamos como saber
que o amor, rasteiro e simples, aplacava
a fome, que mais tarde o aprenderíamos
como aprendemos o verbo. E a obstinada
triste perna, estremecendo ao tropeçar
não deixou de conduzir este braço que
surgido da tal escuridão, quis acenar
cinicamente ao mundo. Axé, mundo
quantas manhas mais me trarás ainda?
E o mundo soprou até à casa de onde sorríamos.
 
Foi quando cantámos. A gentil melodia
a abrir-se toda como ondas às palavras
colhendo umas, rechaçando outras, a vida
estirando-se ao sol, comprida, e o corpo
ao redor dela, a pô-la no regaço. Afinal
a alegria, que chega inteira, não esmaga.
O canto, essa violência afetuosa, crescerá
e eu crescerei, dançando só, ao tactear
às escuras a vida no verso designado
e ardente. Noto como caibo e entro, enfim
no fazer e na solidão. E é então que compreendo.






MARTINA

1. Há até uma certa alegria. Sol, água, vinho.
Dois pulmões impuros & plenos, a pele sana
um banco onde dispor as duas pernas esguias
assim como as catástrofes da existência social
sobretudo doméstica. Toalhas limpas, um teto
e a vida parece estar toda, toda muito certa

mas onde está, onde está a linha negra
que Martina carregava debaixo dos olhos?

2. É devagar que desempenho todas as coisas
práticas. Tenho muita dificuldade em lidar
com o sustentável. A minha infame tragédia
que não é tragédia nenhuma, seria cómica
se não fosse terna. E há tanta ternura por

Martina, que vive tão longe, e acorda
quando me deito.

3. Haveria tanto a dizer-lhe. Olá, tudo
bem. Que gosto muito do Ron Padgett.
Que o correio nunca se atrasa. Que há
um vizinho que faz karaté. Los Angeles.
Um nó. O meu futuro cão. Duas sílabas.
Como é bonito o meu novo cactus e que
tudo, tudo está evidentemente muito certo

​mas onde está, onde está a vida
com Martina?

4. Não há então maneira de adormecer
com a cabeça sobre o seu ventre mudo
e inteiro, que até ao repouso e à luz
estremecia, oh, quase tanto como as palavras?
​
oh-uh-ah-oh-uh-ah-ah, gemia, ah-uh-oh, ah,
ela, eu, gemia, ela, e agora, e agora

oh-ah-uh onde estão, onde estão o corpo
e as mãos de Martina?

5. Escrevi algures que os cabelos de Martina
são como os de Nausícaa, princesa dos Feaces
caminhando para fora dos bosques. Uma imagem
poética, é certo, quase sublime. E completamente
inútil. O amor impõe à memória o cheiro e o tato
mas por que iria a princesa dos Feaces lembrar-se
de mim? A morte, é claro, vem adiar o amor (oh,
o amor) e há tanta roupa por lavar
e até uma certa alegria.












​

​

Quero um samba de raiz o busto do Leão
Hebreu 5k de Kavafy Vertov até à falta de visão

Quero muito escrever um conto sobre baratas
que apareça outro gato desgrenhado numa caixa de batatas

ao chegar ao teu parque de estacionamento
Quero dezoito acordes de violino e uma hora de esclarecimento

numa pastelaria com wi-fi sobre a teoria das cordas
Quero que todos saibam que eu quero saber como é quando acordas

Quero uma taça de gelatina duas colheres metálicas
o cheiro das tuas orelhas numa tarde farta de dálias

Quero muito as tuas mãos pequenas sobre a minha testa
um beijo húmido à entrada da casa e outro à saída da festa

Quero a chávena média o cobertor do lado esquerdo do sofá
dormir quero tanto dormir contigo 250g de açúcar no chá

Quero todos os lugares onde tu estás ou estiveste
que no meu funeral chores mais que todos que rasgues uma veste

Quero ir do Porto ao Haiti e escrever uma epopeia
uma lição um orgasmo um verso um sermão uma ideia

Quero a tua cabeça apenas a tua cabeça nas minhas costas
um pão com manteiga os meus lábios nas tuas unhas tortas












​
​
I WHO CANNOT SING
​




​



​


​​
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MEU DEUS, QUE EU NUNCA PERCA A TERNURA
Visual poem. 2019
Black pen, 1m x 70cm, the same height as the author

Published in Brazil (Escamandro, 2020)
Published in Portugal and the US (VIRADA, 2020)
Presented in the US (2019), Portugal (2019), and Cape-Verde (2020)


​
​

VISUAL POEM IS LOOKING FOR LITERARY CRITIC
​TO HAVE A SERIOUS RELATIONSHIP


​
JE NE SAIS PAS

Não sei
se a Teresa se a Marta
a Teresa é uma roda de samba
a Marta escreve em vidros embaciados
hi there why don’t you give me a call? xxx

Eu porém Patrícia não sei
comprei um lenço arrisquei-me cruzei a porta
e faltei às duas declarando rinite alérgica

Que pena que você não vem etc., etc.
as melhoras, um beijo etc., etc.

Essa rinite vai a durar a vida toda etc., etc.
é melhor parar por aqui etc., etc.

E foi às portas da livraria que fingi
assoar-me tossir tomar de uma golada
o Rinialer e pensei: há ± 2500 anos que ninguém
me ama. I don’t even know how to return a call.
Saldo 0€, telephobia o direito a estar calado,
qualquer coisa assim, trágica, como um peixinho
a treinar respiração dentro de água,
por exemplo:


​





​
​ACTINIDIA DELICIOSA

A actinidia deliciosa é uma planta trepadeira originária dos bosques do vale do rio Yangtsé. Foi introduzida na Nova Zelândia em 1904.

O kiwi, da actinidia deliciosa, chama-se kiwi por ser, em aspeto, tão similar ao kiwi, ave característica nova-zelandesa, Apteryx da família Apterygidae, que é do tamanho de uma galinha doméstica. Isso eu li na wikipédia.

O kiwi não é um fruto como todos pensam que ele é. Por pensarem isto, todos o depelam antes de comer. O ato de depelar o kiwi é desnecessário. Isto foste tu quem mo disse.

A visão errónea da definição do kiwi faz com que ele seja menos comido e diz muito sobre a raça humana que tanto gosta de depelar como não sabe nada sobre as coisas que a rodeiam. Até porque o pouco que sabe não lhe foi dito por nenhum dos kiwis.

Isto foi o que eu concluí depois da wikipédia e de ti.







A PANTUFA

I

As nossas enormes pantufas tinham orelhas, bocas e dentes
para que desbravássemos o chão, a casa e os pais
e suportássemos com um leão nos dedos o frio português

As pantufas vendem-se no supermercado, são para crianças
(porque os adultos, alguém disse, parecem ridículos com elas)
e o seu preço sobe ou desce a partir do quão exótico o animal é.

Mas nem todas as pantufas têm a forma de um animal, exótico ou não,
e nem todas as crianças têm pantufas, com a forma de um animal ou não.
Nós tivemos um par cada um, cuidámo-lo, crescemos e esquecemo-lo

como esquecemos o conforto do nosso país, da casa e dos pais
por agora desbravarmos outras terras e outros idiomas, estrangeiros,
tu e eu sem um leão nos dedos, com algum azar, solidão e brio.

II

Pantufa vem do francês pantoufle; em inglês diz-se slipper
(do verbo to slip, e lembra slippering, que é um castigo
a chicotadas, reguadas ou chineladas. Atroz, absoluto).

Pantufla, do espanhol, tem entre as fonéticas a mais cheia
e confortável: como devem ser de resto as próprias pantufas
inventadas ninguém sabe ao certo por quem nem quando

e onde. Este, Oeste, século XII. Regalia certamente de poucos
cobiçada talvez por alguns e desconhecida de muitos, a pantufa
mais antiga do que o astrolábio, existe há tanto tempo como a bússola

e há quase tanto tempo como a ambulância. A pantufa não consta
entre os objetos que se levariam hipoteticamente para uma ilha deserta.
A pantufa não salva nem alimenta. Aquece. E como qualquer objeto

III

foi adquirindo ao longo do tempo novas funções e feitios.
No século XXI a pantufa é usada nos desertos dos Estados Unidos: El Paso,
Arizona ou San Diego. Feita à medida de todos os sapatos indocumentados

​a pantufa, vendida por mexicanos a mexicanos, cobre as pegadas
dos que, numa mão, carregam os filhos e na outra a garrafa de água.
A garrafa de água, forrada com fita-cola, afasta o sol; evita também o reflexo

do sol no plástico e o disparo de uma AR-15. Não parecem ridículos
os indocumentados ao longo da fronteira. A pantufa, maciça e multiplicada
prediz o número de corpos desaparecidos. As famílias dos mortos jamais

recebem de volta as pantufas. Há por isso quem, além das garrafas forradas
colecione pantufas perto de onde os indocumentados e as indocumentadas tombam.
O debate entre os artistas estadunidenses que trabalham com pantufas e garrafas

é essencialmente estético e inútil: limpar ou não a pantufa antes de colocá-la
no museu? Mas não há nenhuma estética na pantufa, maciça e multiplicada
ao longo da fronteira nos pés dos indocumentados. Não há estética onde não há Deus. 






​





​
​

​VIRADA

VAPOR
​


MUSEU DOS DESCOBRIMENTOS: PORTUGAL 2019


​

​






​

PREOCUPAÇÃO

Cuido saber onde pôr as vírgulas
mas não cuido saber onde pôr-me



​





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​

​

EPITÁFIO

Amei as saias das mulheres
e amei as mulheres
















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O meu braço translúcido
e plagiotrópico
reescreve a tradição
obliquamente
​

Chegará ainda o dia em que me elogiarão de torta
e em que eu poderei finalmente dizer

Que dores terríveis de costas








​


​






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​




​Meu deus, faz com que eu seja sempre uma poeta
terrena
​

Tudo
menos babaca







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Nasci a 20km do Rio Douro
e hoje molho os pézinhos no Pacífico

Quem vai dizer de onde sou
depois de tantos ímanes
no frigorífico?





​





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NO RINGUE COM A MUSA

​A multidão gritou
o árbitro contou até três
a campainha soou


ela não veio








​




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AULA DE MÚSICA 
 
Héracles chegou atrasado carregando a lira pelo jugo.
Expirava furioso ao pousá-la sobre o colo
quando Lino o repreendeu. Héracles endireitou-se e
repetindo os gestos dos companheiros
tocou o primeiro acorde.
 
A lira vibrava em desespero
Orfeu e Tâmiris suspiraram.
 
Lino interrompeu a pequena orquestra e
depois de encaminhar-se sorridente para Héracles
acomodou-lhe os enormes e desastrosos dedos entre as seis cordas.
 
Pediu-lhe que tocasse de novo.
Héracles tocou.
 
Lino, filho de Urânia e Apolo
inventor da melodia
vencedor dos jogos dos Argivos
o primeiro a cantar ao som da harpa
moveu então para cima o indicador mastodôntico do filho de Zeus
sem antecipar
porém
que o estudante se levantaria.
 
Héracles levantou-se, o professor encolheu-se
perante o seu braço musculado erguendo a pequena lira no ar.
 
Lino pôde soltar três lamentos inaudíveis até que Héracles o esmagasse.
 
Orfeu e Tâmiris correram em seu socorro
lira e cabeça abertas ao meio
pois não perde sempre a delicadeza para a força bruta?
E a Grécia chorava.




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AULA DE MÚSICA 















​OUTROS PROBLEMAS DA POESIA
 
Não me leva a jantar fora, tampouco me traz o amor do pai
E são poucos os que gostam dela
praticamente nenhuns
menos ainda os que a entendem
ou os que escrevem para melhor entendê-la
 
Entre os três
estimo sobretudo os últimos
porque mais prescindível do que escrever poesia
é escrever sobre ela
 
Não vem quando lhe peço nem vai quando lhe digo
jamais dará conta do meu desaparecimento
porque ela existe para si
como a negação positiva de si mesma
transando unicamente com o irregular
 
Não viverei mais por escrevê-la, ela não nos salvará
do mau fígado, do melanoma, do acidente
nem pagará a gasolina, muito menos a renda
E são realmente poucos os que gostam
menos do que os que fingem lê-la
 
Mas ela é o baque
 
o preço irreparável da beleza
porque a beleza nos custa quase tudo
menos a teimosia do canto e a óbvia
tão grande queda
 
para o humor


​© LINO. 2023.
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