VISITING PROFESSOR OF PORTUGUESE AND/OR LUSOPHONE AFRICAN LITERATURE AND CULTURAL STUDIES
DEPARTMENT OF PORTUGUESE AND BRAZILIAN STUDIES // BROWN UNIVERSITY
APPLICATION
DEPARTMENT OF PORTUGUESE AND BRAZILIAN STUDIES // BROWN UNIVERSITY
APPLICATION
QUEM TEM MEDO DA EXPANSÃO? [EXCERTO DA INTRODUÇÃO DE IED]
῞Ωσπερ τόδε. οἶσθ ὅτι ποίησίς ἐστί τι πολύ· ἡ γάρ τοι
ἐκ τοῦ μὴ ὄντος εἰς τὸ ὂν ἰόντι ὁτῳοῦν αἰτία πᾶσά ἐστι
ποίησις, ὥστε καὶ αἱ ὑπὸ πάσαις ταῖς τέχναις ἐργασίαι
ποιήσεις εἰσὶ καὶ οἱ τούτων δημιουργοὶ πάντες ποιηταί.
[Ἀληθῆ λέγεις.]
Ἀλλ ὅμως, ἦ δ ἥ, οἶσθ ὅτι οὐ καλοῦνται ποιηταὶ ἀλλὰ
ἄλλα ἔχουσιν ὀνόματα, ἀπὸ δὲ πάσης τῆς ποιήσεως ἓν
μόριον ἀφορισθὲν τὸ περὶ τὴν μουσικὴν καὶ τὰ μέτρα
τῷ τοῦ ὅλου ὀνόματι προσαγορεύεται. ποίησις γὰρ
τοῦτο μόνον καλεῖται, καὶ οἱ ἔχοντες τοῦτο τὸ μόριον
τῆς ποιήσεως ποιηταί.
Poesia significa originalmente criação e a criação,
como sabem, pode tomar várias formas. Qualquer ação
que seja a causa de uma coisa a emergir da não-
existência para a existência pode ser chamada poesia e
todos os processos em todas as matérias são tipos de
poesia e todos aqueles que os fazem são poetas”.
“Sim”. “Ainda assim, não são chamados poetas, têm
outros nomes, e, de todo o campo da poesia e criação,
uma parte, que lida com música e métrica, está isolada e
é chamada pelo nome que denomina o todo. Esta parte
sozinha chama-se poesia e aqueles que pertencem a esta
parte são chamados poetas.
Platão, Symposium. 250b-c.
Trad. minha.
ENTRE O ANTIGO E O NOVO
A intervenção de Diotima abre espaço para a discussão de várias questões relacionadas com o fazer e a análise do poema.
A expansão é anterior à escrita.
Talvez porque, em certo sentido, a expansão do poema seja, ainda e quase exclusivamente, associada à produção das vanguardas europeias e latino-americanas do século XX, ignoramos, por comodidade ou modismo, tanto a etimologia do termo (poema) quanto as particularidades do ofício antigo de fazer – intermedialmente – poemas; anteriores, por séculos adentro, à “relativamente recente” escrita alfabética, à arte da impressão e à tecnologia moderna do livro. Não só não podemos dissociar “a origem da poesia (...) do seu aspecto pictórico”[1], sonoro e gestual, como temos, pelo fato de o poema prestar-se naturalmente à expansão das faculdades do corpo que o faz, de analisá-lo à luz do domínio heterogêneo das matérias e das expressões.
Um oxímoro necessário.
O propósito de expressões oximóricas, como “poema expandido”, “poema híbrido” ou “poema intermedial”[2], não diz, como se poderia pressupor, respeito à separação categórica entre poema expandido e poema, porque o poema é sempre expandido, mas à necessidade de relembrar, a quem o esquece, que a dimensão visual, sonora ou gestual se sobrepõe às vezes, no contexto profundamente hierárquico e colonial das expressões, ao verbo, e desarrumar, assim, o conforto imóvel e logocêntrico da página. Estas expressões, que nos obrigam a olhar para trás no tempo, denominam, por isso, poemas evidentemente visuais, sonoros, tridimensionais ou performáticos com o objetivo de incluí-los na conversa, académica ou não, sobre a poesia antiga e moderna e descrevem obviamente os trabalhos daquelas que, contra a instituição do poema exclusivamente verbal, abraçam a multiplicidade da origem e fazem tão-só poemas.
A resistência contra o poema expandido.
O poema exclusivamente verbal, impresso na página ou digitado na tela, concentra na sua forma a ilusão da estabilidade e, ao mesmo tempo, a familiaridade do código. O que quer dizer que, por um lado, recebe a leitora com a garantia de que, formalmente, tudo acabou – não há nada a mais nem a menos – e, por outro, o faz através do alfabeto que, em princípio, a leitora reconhece e domina. Indiferente às dificuldades, tumultos e qualidade do poema, a ficção da totalidade monodisciplinar, assombrada pelo autor genial e inspirado, é automaticamente posta em causa pela possibilidade de expandir visual, sonora ou performativamente o signo, bem como pela multiplicidade de materiais, idiomas e universalidade[3] comuns ao fazer do poema expandido. Incompleta e circular, a expansão assenta na promessa de recriação infinita, avessa à imobilidade e favorável à coletividade da própria recriação entre autoras – e autoras e leitoras.
Além disso, por contrariar a inclinação logocêntrica da análise tradicional do poema, o diálogo colaborativo contra o fim e a individualidade assusta tanto a leitora quanto a crítica ou professora de poesia. Afinal de contas, a fantasia monodisciplinar do poema de código convencional acompanha a monodisciplinaridade do sistema ocidental de educação. E vice-versa.
A análise da perda, a perda da análise.
Apesar de isto poder generalizadamente aplicar-se ao poema, o poema evidentemente expandido, em que a dimensão visual, sonora ou performática rouba, muitas vezes, o protagonismo à dimensão verbal da composição, põe a descoberto as fragilidades do discurso analítico linear-lógico-discursivo ao escapar visual, sonora e performativamente à intervenção crítico-literária ou acadêmica. Não se pode então, perante tal tropeço metodológico, esperar da ensaísta que escreva o seu ensaio em coerência com o corpo múltiplo e inalcançável do poema? E perca, à visto disso, o controle parcial do espaço da análise para, em primeiro lugar, expandir-se à medida que o objeto de estudo se expande e, mais tarde, insistir na prática interpretativa de criação?
O problema do rigor.
Sabemos que o desenvolvimento do fazer evidentemente expandido do poema não corresponde ao desenvolvimento crítico ou acadêmico da leitura que, apoiada sobretudo em instrumentos e técnicas elaboradas com base no poema de código convencional, pouco se desdobra ao nível da visão, audição, musicalidade ou performatividade. Ou: o risco em que o corpo da poeta incorre ao expandir-se não pressupõe que o corpo da leitora se amplie sincronizadamente para analisar, com o olho, o ouvido ou a mão, as dimensões visual, sonora e performática do poema ou sequer conceba o trabalho da palavra como o trabalho pleno e transmedial destas 3.
Apesar de não limitar ou barrar, em ponto absolutamente nenhum, o ofício de quem faz o poema, isto explica, por exemplo, por que razão um número considerável de poemas expandidos, excluídos, regularmente, dos currículos tradicionais de literaturas afro-luso-brasileiras, continua por analisar, ou tão-só o fato de, entre os estudos sobre tais objetos, encontrarmos sobretudo aqueles que se debruçam linear-lógica-discursivamente sobre a visualidade ou a sonoridade do texto.
Parece-me que, no universo acadêmico, a resistência à abordagem expandida do poema assenta, sobretudo, em 2 princípios. O da falta de rigor e o do não-saber. Em relação ao primeiro, e porque o ensaio expandido exige de quem o escreve não só as palavras mas também as imagens, os sons e os gestos para melhor entender o objeto em análise, constato que, de certo modo, muitos pensam ainda à sombra daquilo que, por exemplo, T. S. Eliot escreveu em 1923. Depois de definir a criação como um processo autotélico, Eliot conclui que a crítica não pode ser criativa por existir com o propósito de explicar, avaliar ou descrever rigorosamente outro objeto;[4] o que, com base na suposta originalidade da criação, nega muito depressa à apropriação ou à tradução o seu estatuto criativo e rasura, mais generalizadamente, a ideia de criação como reciclagem ou convívio assumido com um ou mais trabalhos de uma ou mais autoras. Põe igualmente em causa o próprio ensaio, que se escreve idealmente para dizer algo novo sobre o poema.
No que diz respeito ao segundo, e porque nos ensinam a pensar essencial e colonialmente por e com palavras, há o receio de não-saber pensar por e com imagens, sons, cheiros ou gestos e, a seu lado, o desânimo em competir com quem pensa por e com imagens, sons, cheiros ou gestos e, por sua vez, o pavor de não dar conta das imagens, sons, cheios ou gestos do poema. Ambos se agarram, de bom grado, ao aconchego institucional – perder o medo corresponderia à re-significação e à revitalização necessária e cada vez mais urgente da academia.
Um espaço primário de solidão.
Quem faz poemas evidentemente expandidos cruza-se, portanto, com o impasse: ao antecipar tanto a plataforma (corpórea, tridimensional ou virtual) quanto a interpretação de uma leitora deseducada para ler de modo expandido, a autora existe, por consequência, num espaço primário de solidão. À sua semelhança, e no contexto de um sistema educativo escasso em exercícios interdisciplinares e devido à recente e, por isso, não muito desenvolvida análise expandida e criativa do poema, também a ensaísta parte, consciente da lacuna, do mesmo lugar inabitado: como pode, afinal, o modelo contíguo do ensaio conviver com a iconicidade do pensamento do fazer indisciplinado?
A POESIA BRASILEIRA EXPANDIDA
A indisciplina marca, como se poderia dizer de poucos, o fazer do poema brasileiro do último século. Afirmá-lo não diz unicamente respeito ao fazer do poema assumidamente expandido dos anos 50 e, de resto, o mais internacional até hoje, mas, de modo amplo, a uma sequência consideravelmente longa de eventos que, entre meios, matérias e corpos, resistiu, antes e depois, à predisposição generalizadamente logocêntrica, vergada e descritiva da poesia institucional.
Refletir, portanto, sobre o desenvolvimento da expansão corresponde, em primeiro lugar, a repensar a série de decisões tímida e gradualmente revolucionárias que precede, ao abrir um século de experimentação e irreverência, a verbivocovisualidade e suas demais radicalizações.
Depois de exercícios visuais e pré-concretos assinados pontualmente por Gregório de Matos,[5] Oswald de Andrade e Inácio Ferreira da Costa,[6] a métrica de câmara dos poemas-olho de Cocktails (1922-1924) de Luís Aranha, que vinha, por sua vez, fazendo desenhos verbais no espaço (Infraleitura 1), antecipa os desenhos literais com que Tarsila do Amaral participa em Pau Brasil (1925). Pau Brasil e Quelques Visages de Paris (1925), de Vicente do Rego Monteiro, estão, ao mesmo tempo, na retaguarda da atual linha brasileira de livros de poemas com desenhos e na raiz das possibilidades estéticas e formais que a inclusão do desenho, do ritmo do desenho e do poema desenhado impuseram ao modelo tradicional e supostamente inviolável do livro (Infraleitura 2). O Primeiro Caderno do Alumno de Poesia Oswald de Andrade (1927), O Mundo do Menino Impossível (1927), Álbum de Pagu (1929), Dia Garimpo (1939) e o mais tardio Oswald Psicografado (1981) materializam, desde o crescente atrevimento gráfico à diversificação dos materiais, as primeiras das inúmeras possibilidades deste novo gênero híbrido.
À frente do processo de espacialização do poema brasileiro, o poema desenhado aponta, em simultâneo, para 2 tempos: o das crianças, que desenham antes de escrever, e o de outro modo, não necessariamente linear, de ler e, por consequência, de interpretar. Ao não se desdobrar apenas sobre a palavra, a interpretação passa mais evidentemente a não se referir, de modo exclusivo ou em absoluto, ao que a autora está querendo dizer.
O que a autora está querendo fazer?, ou a pergunta que substitui automaticamente a (quase inquestionada) suposição, vai não só ao encontro da análise da disposição formal (e desenhada) do texto, mas também da indissociabilidade entre significado e experiência, e a experiência é sempre corporal.
Não surpreende, então, que o desenho como projeção das coisas no espaço, o interesse pela experiência não-verbal do fazer e da interpretação e a exploração da imagem adiantem tanto a renúncia em comunicar com recurso único às regras da comunicação escrita quanto a transformação do poema na própria coisa expandida, praticamente indecifrável e produtora contínua de tombos interpretativos.
A opacidade expandida, anticolonial e necessariamente interativa destes exercícios desenvolver-se-á, logo depois, com a proposta verbivocovisual dos poetas concretos e, a longo prazo, com Augusto de Campos – que a aprofundará a partir da repetição pungente e poliforme do não (Infraleitura 3). Manifestamente político, sintético ou codificado, o não-poema exige à leitora que intervenha diretamente na composição, e intervir nos não-poemas de Augusto corresponde a não-entender para lá do verbo, com o olhouvido, a decifrar a composição que não diz e a apreciar, não sem certa ironia, o tombo.
Às vezes massificante, às vezes universal, a entrada expressa do olhouvido na leitura do que não se diz e tão-só do que se faz levará, a par do processo de espacialização do poema, à necessidade de ampliar a experiência crescente do corpo: o poema que escapa às garras do logos ocidental e se inflete, condensado e paralisante, para não-comunicar, ganha, pouco mais tarde, uma terceira dimensão.
Além de ver e escutar, a leitora terá, à semelhança dos corpos que entram nos objetos relacionais de Lygia Clark e Lygia Pape, de tocar forçosamente com as mãos os livros-poema e poemas espaciais de Ferreira Gullar, Osmar Dillon e Neide de Sá para ler. E ler refere-se mais ao conjunto de movimentos e sensações não-verbais que circunda a palavra do que à palavra propriamente dita.
Trata-se, na verdade, de uma enorme brincadeira: assim como desenham antes de escrever, as crianças também tocam (e comem e cheiram) as coisas para não-entender as coisas. Por essa razão, do mesmo modo que ampara os livros de poemas com desenhos, a infância ou a ideia do regresso à infância decolonizada e coletiva da nação também perpassa, desde dos ventres metafóricos de Lygia Clark até ao regresso gullariano do corpo todo à terra, estes não-objetos tridimensionais anticapitalistas.
A tridimensionalização do poema, que resulta na entrada tridimensional do corpo da própria leitora ou co-autora no espaço do poema, coincide no tempo com a igualmente tridimensional proposta de Wlademir Dias-Pino n’A Ave (1953-1956). A Ave está, além do mais, na origem da mais radical das vanguardas intermediais do século XX brasileiro.
Ao desobedecer às leis do sistema alfabético e profundamente avesso ao sucesso individual e corporativo do autor, o poema/processo distingue-se por trazer 3 enormes questões para este debate sobre o fazer. A dos poemas não-verbais em quadrinhos, ao encontrar na estrutura sequencial, massificante e variável dos quadrinhos um lugar para o poema que, em silêncio, se desenrola pelo infinito (Álvaro de Sá, 12 x 9, 1967). A dos poemas comestíveis, radicalização direta da tridimensionalidade dos poemas espaciais neoconcretos e a materialização do desejo infantil de levar coisas à boca – o poema ganha 3 dimensões, é digerível e entranha-se no corpo (“Poema-pão de dois metros”, Feira de Arte do Recife, 1970). E, finalmente, o poema-corpo que carrega o alfabeto (Paulo Bruscky e Unhandeijara Lisboa, “Poesia viva”, 1977) e prediz o que atiça as normas da escrita (Lenora de Barros, “Poema”, 1979) e da categorização (Ricardo Aleixo, “Meu negro”, 2018).
Incategorizável é também o corpo queer e pornô de Eduardo Kac, que, como a versão mais desnuda e desbundante de Flávio de Carvalho e o seu traje executivo tropical,[7] sai às ruas do Rio de Janeiro nos anos 80.
Não espanta, aliás, que Kac tenha concebido o seu primeiro holopoema na mesma década (“HOLO/OLHO”, 1983) e chegado, com base na sua quarta dimensão, ao poema do espaço 2 décadas mais tarde. Uma, a holopoesia, e outra, a space poetry, concernem, respectivamente, à tridimensionalização do significante, um corpo tão vivo como o que o lê noutro tempo, e à ocupação humana e poética do espaço extraterrestre a partir da reinvenção do próprio corpo – sem nacionalidade, gênero ou gravidade e antítese da definição.
9 PASSOS ANTROPOFÁGICOS OU MORDIDAS NO ESPAÇO
A reinvenção do corpo que, ao flutuar anti-gravitacionalmente com o poema,[8] abandona as restrições do logos e, sobretudo, da escrita alfabética romana, diz, em primeiro lugar, respeito à antropofagia. Com efeito, o que acontece entre o verso praxinoscópico de Aranha, que quis saltar visualmente para fora da página, e o poema palpável, segue coerentemente a lógica da devoração. À medida que a palavra desce na hierarquia para encontrar a imagem, o som, o gesto, o palato e desaparece em quantidade do poema, o corpo antropofágico emerge gradualmente para apoderar-se deste novo quadro poético-anárquico de expressões.
E vice-versa.
À medida que, ao assumir várias formas não-verbais, o corpo antropófago vai comendo a palavra, ou descobrindo o todo que a imposição da palavra encobre, o poema vai, pouco a pouco, transformando-se no organismo que dá mordidas estrategicamente violentas no espaço.
Esta forma de violência, tão provocadora quanto humorística, que, também ao devorá-lo, amplia técnica e socialmente um conceito caro à cultura brasileira, não podia não ser exclusivamente corporal – à violência exercida sobre os corpos das colonizadas, reduzidos a corpos não-pensantes e classificados discriminada e verbalmente por gênero, animalidade ou raça pela entidade cerebral e abstrata do colonizador, responde-se com a violência da mordida do corpo indefinido que se exibe e rebela contra a imposição do sistema comunicativo de poder.
A correspondência entre o desenvolvimento do poema expandido brasileiro e 9 passos antropofágicos por mim formulados, lembra-nos, além disso, que, apesar de muitas vezes associada a um capricho estético difícil de ler e ensinar, a intermedialidade, que afronta espaço-temporalmente as leis do Ocidente, é sempre política.
A intervenção de Diotima abre espaço para a discussão de várias questões relacionadas com o fazer e a análise do poema.
A expansão é anterior à escrita.
Talvez porque, em certo sentido, a expansão do poema seja, ainda e quase exclusivamente, associada à produção das vanguardas europeias e latino-americanas do século XX, ignoramos, por comodidade ou modismo, tanto a etimologia do termo (poema) quanto as particularidades do ofício antigo de fazer – intermedialmente – poemas; anteriores, por séculos adentro, à “relativamente recente” escrita alfabética, à arte da impressão e à tecnologia moderna do livro. Não só não podemos dissociar “a origem da poesia (...) do seu aspecto pictórico”[1], sonoro e gestual, como temos, pelo fato de o poema prestar-se naturalmente à expansão das faculdades do corpo que o faz, de analisá-lo à luz do domínio heterogêneo das matérias e das expressões.
Um oxímoro necessário.
O propósito de expressões oximóricas, como “poema expandido”, “poema híbrido” ou “poema intermedial”[2], não diz, como se poderia pressupor, respeito à separação categórica entre poema expandido e poema, porque o poema é sempre expandido, mas à necessidade de relembrar, a quem o esquece, que a dimensão visual, sonora ou gestual se sobrepõe às vezes, no contexto profundamente hierárquico e colonial das expressões, ao verbo, e desarrumar, assim, o conforto imóvel e logocêntrico da página. Estas expressões, que nos obrigam a olhar para trás no tempo, denominam, por isso, poemas evidentemente visuais, sonoros, tridimensionais ou performáticos com o objetivo de incluí-los na conversa, académica ou não, sobre a poesia antiga e moderna e descrevem obviamente os trabalhos daquelas que, contra a instituição do poema exclusivamente verbal, abraçam a multiplicidade da origem e fazem tão-só poemas.
A resistência contra o poema expandido.
O poema exclusivamente verbal, impresso na página ou digitado na tela, concentra na sua forma a ilusão da estabilidade e, ao mesmo tempo, a familiaridade do código. O que quer dizer que, por um lado, recebe a leitora com a garantia de que, formalmente, tudo acabou – não há nada a mais nem a menos – e, por outro, o faz através do alfabeto que, em princípio, a leitora reconhece e domina. Indiferente às dificuldades, tumultos e qualidade do poema, a ficção da totalidade monodisciplinar, assombrada pelo autor genial e inspirado, é automaticamente posta em causa pela possibilidade de expandir visual, sonora ou performativamente o signo, bem como pela multiplicidade de materiais, idiomas e universalidade[3] comuns ao fazer do poema expandido. Incompleta e circular, a expansão assenta na promessa de recriação infinita, avessa à imobilidade e favorável à coletividade da própria recriação entre autoras – e autoras e leitoras.
Além disso, por contrariar a inclinação logocêntrica da análise tradicional do poema, o diálogo colaborativo contra o fim e a individualidade assusta tanto a leitora quanto a crítica ou professora de poesia. Afinal de contas, a fantasia monodisciplinar do poema de código convencional acompanha a monodisciplinaridade do sistema ocidental de educação. E vice-versa.
A análise da perda, a perda da análise.
Apesar de isto poder generalizadamente aplicar-se ao poema, o poema evidentemente expandido, em que a dimensão visual, sonora ou performática rouba, muitas vezes, o protagonismo à dimensão verbal da composição, põe a descoberto as fragilidades do discurso analítico linear-lógico-discursivo ao escapar visual, sonora e performativamente à intervenção crítico-literária ou acadêmica. Não se pode então, perante tal tropeço metodológico, esperar da ensaísta que escreva o seu ensaio em coerência com o corpo múltiplo e inalcançável do poema? E perca, à visto disso, o controle parcial do espaço da análise para, em primeiro lugar, expandir-se à medida que o objeto de estudo se expande e, mais tarde, insistir na prática interpretativa de criação?
O problema do rigor.
Sabemos que o desenvolvimento do fazer evidentemente expandido do poema não corresponde ao desenvolvimento crítico ou acadêmico da leitura que, apoiada sobretudo em instrumentos e técnicas elaboradas com base no poema de código convencional, pouco se desdobra ao nível da visão, audição, musicalidade ou performatividade. Ou: o risco em que o corpo da poeta incorre ao expandir-se não pressupõe que o corpo da leitora se amplie sincronizadamente para analisar, com o olho, o ouvido ou a mão, as dimensões visual, sonora e performática do poema ou sequer conceba o trabalho da palavra como o trabalho pleno e transmedial destas 3.
Apesar de não limitar ou barrar, em ponto absolutamente nenhum, o ofício de quem faz o poema, isto explica, por exemplo, por que razão um número considerável de poemas expandidos, excluídos, regularmente, dos currículos tradicionais de literaturas afro-luso-brasileiras, continua por analisar, ou tão-só o fato de, entre os estudos sobre tais objetos, encontrarmos sobretudo aqueles que se debruçam linear-lógica-discursivamente sobre a visualidade ou a sonoridade do texto.
Parece-me que, no universo acadêmico, a resistência à abordagem expandida do poema assenta, sobretudo, em 2 princípios. O da falta de rigor e o do não-saber. Em relação ao primeiro, e porque o ensaio expandido exige de quem o escreve não só as palavras mas também as imagens, os sons e os gestos para melhor entender o objeto em análise, constato que, de certo modo, muitos pensam ainda à sombra daquilo que, por exemplo, T. S. Eliot escreveu em 1923. Depois de definir a criação como um processo autotélico, Eliot conclui que a crítica não pode ser criativa por existir com o propósito de explicar, avaliar ou descrever rigorosamente outro objeto;[4] o que, com base na suposta originalidade da criação, nega muito depressa à apropriação ou à tradução o seu estatuto criativo e rasura, mais generalizadamente, a ideia de criação como reciclagem ou convívio assumido com um ou mais trabalhos de uma ou mais autoras. Põe igualmente em causa o próprio ensaio, que se escreve idealmente para dizer algo novo sobre o poema.
No que diz respeito ao segundo, e porque nos ensinam a pensar essencial e colonialmente por e com palavras, há o receio de não-saber pensar por e com imagens, sons, cheiros ou gestos e, a seu lado, o desânimo em competir com quem pensa por e com imagens, sons, cheiros ou gestos e, por sua vez, o pavor de não dar conta das imagens, sons, cheios ou gestos do poema. Ambos se agarram, de bom grado, ao aconchego institucional – perder o medo corresponderia à re-significação e à revitalização necessária e cada vez mais urgente da academia.
Um espaço primário de solidão.
Quem faz poemas evidentemente expandidos cruza-se, portanto, com o impasse: ao antecipar tanto a plataforma (corpórea, tridimensional ou virtual) quanto a interpretação de uma leitora deseducada para ler de modo expandido, a autora existe, por consequência, num espaço primário de solidão. À sua semelhança, e no contexto de um sistema educativo escasso em exercícios interdisciplinares e devido à recente e, por isso, não muito desenvolvida análise expandida e criativa do poema, também a ensaísta parte, consciente da lacuna, do mesmo lugar inabitado: como pode, afinal, o modelo contíguo do ensaio conviver com a iconicidade do pensamento do fazer indisciplinado?
A POESIA BRASILEIRA EXPANDIDA
A indisciplina marca, como se poderia dizer de poucos, o fazer do poema brasileiro do último século. Afirmá-lo não diz unicamente respeito ao fazer do poema assumidamente expandido dos anos 50 e, de resto, o mais internacional até hoje, mas, de modo amplo, a uma sequência consideravelmente longa de eventos que, entre meios, matérias e corpos, resistiu, antes e depois, à predisposição generalizadamente logocêntrica, vergada e descritiva da poesia institucional.
Refletir, portanto, sobre o desenvolvimento da expansão corresponde, em primeiro lugar, a repensar a série de decisões tímida e gradualmente revolucionárias que precede, ao abrir um século de experimentação e irreverência, a verbivocovisualidade e suas demais radicalizações.
Depois de exercícios visuais e pré-concretos assinados pontualmente por Gregório de Matos,[5] Oswald de Andrade e Inácio Ferreira da Costa,[6] a métrica de câmara dos poemas-olho de Cocktails (1922-1924) de Luís Aranha, que vinha, por sua vez, fazendo desenhos verbais no espaço (Infraleitura 1), antecipa os desenhos literais com que Tarsila do Amaral participa em Pau Brasil (1925). Pau Brasil e Quelques Visages de Paris (1925), de Vicente do Rego Monteiro, estão, ao mesmo tempo, na retaguarda da atual linha brasileira de livros de poemas com desenhos e na raiz das possibilidades estéticas e formais que a inclusão do desenho, do ritmo do desenho e do poema desenhado impuseram ao modelo tradicional e supostamente inviolável do livro (Infraleitura 2). O Primeiro Caderno do Alumno de Poesia Oswald de Andrade (1927), O Mundo do Menino Impossível (1927), Álbum de Pagu (1929), Dia Garimpo (1939) e o mais tardio Oswald Psicografado (1981) materializam, desde o crescente atrevimento gráfico à diversificação dos materiais, as primeiras das inúmeras possibilidades deste novo gênero híbrido.
À frente do processo de espacialização do poema brasileiro, o poema desenhado aponta, em simultâneo, para 2 tempos: o das crianças, que desenham antes de escrever, e o de outro modo, não necessariamente linear, de ler e, por consequência, de interpretar. Ao não se desdobrar apenas sobre a palavra, a interpretação passa mais evidentemente a não se referir, de modo exclusivo ou em absoluto, ao que a autora está querendo dizer.
O que a autora está querendo fazer?, ou a pergunta que substitui automaticamente a (quase inquestionada) suposição, vai não só ao encontro da análise da disposição formal (e desenhada) do texto, mas também da indissociabilidade entre significado e experiência, e a experiência é sempre corporal.
Não surpreende, então, que o desenho como projeção das coisas no espaço, o interesse pela experiência não-verbal do fazer e da interpretação e a exploração da imagem adiantem tanto a renúncia em comunicar com recurso único às regras da comunicação escrita quanto a transformação do poema na própria coisa expandida, praticamente indecifrável e produtora contínua de tombos interpretativos.
A opacidade expandida, anticolonial e necessariamente interativa destes exercícios desenvolver-se-á, logo depois, com a proposta verbivocovisual dos poetas concretos e, a longo prazo, com Augusto de Campos – que a aprofundará a partir da repetição pungente e poliforme do não (Infraleitura 3). Manifestamente político, sintético ou codificado, o não-poema exige à leitora que intervenha diretamente na composição, e intervir nos não-poemas de Augusto corresponde a não-entender para lá do verbo, com o olhouvido, a decifrar a composição que não diz e a apreciar, não sem certa ironia, o tombo.
Às vezes massificante, às vezes universal, a entrada expressa do olhouvido na leitura do que não se diz e tão-só do que se faz levará, a par do processo de espacialização do poema, à necessidade de ampliar a experiência crescente do corpo: o poema que escapa às garras do logos ocidental e se inflete, condensado e paralisante, para não-comunicar, ganha, pouco mais tarde, uma terceira dimensão.
Além de ver e escutar, a leitora terá, à semelhança dos corpos que entram nos objetos relacionais de Lygia Clark e Lygia Pape, de tocar forçosamente com as mãos os livros-poema e poemas espaciais de Ferreira Gullar, Osmar Dillon e Neide de Sá para ler. E ler refere-se mais ao conjunto de movimentos e sensações não-verbais que circunda a palavra do que à palavra propriamente dita.
Trata-se, na verdade, de uma enorme brincadeira: assim como desenham antes de escrever, as crianças também tocam (e comem e cheiram) as coisas para não-entender as coisas. Por essa razão, do mesmo modo que ampara os livros de poemas com desenhos, a infância ou a ideia do regresso à infância decolonizada e coletiva da nação também perpassa, desde dos ventres metafóricos de Lygia Clark até ao regresso gullariano do corpo todo à terra, estes não-objetos tridimensionais anticapitalistas.
A tridimensionalização do poema, que resulta na entrada tridimensional do corpo da própria leitora ou co-autora no espaço do poema, coincide no tempo com a igualmente tridimensional proposta de Wlademir Dias-Pino n’A Ave (1953-1956). A Ave está, além do mais, na origem da mais radical das vanguardas intermediais do século XX brasileiro.
Ao desobedecer às leis do sistema alfabético e profundamente avesso ao sucesso individual e corporativo do autor, o poema/processo distingue-se por trazer 3 enormes questões para este debate sobre o fazer. A dos poemas não-verbais em quadrinhos, ao encontrar na estrutura sequencial, massificante e variável dos quadrinhos um lugar para o poema que, em silêncio, se desenrola pelo infinito (Álvaro de Sá, 12 x 9, 1967). A dos poemas comestíveis, radicalização direta da tridimensionalidade dos poemas espaciais neoconcretos e a materialização do desejo infantil de levar coisas à boca – o poema ganha 3 dimensões, é digerível e entranha-se no corpo (“Poema-pão de dois metros”, Feira de Arte do Recife, 1970). E, finalmente, o poema-corpo que carrega o alfabeto (Paulo Bruscky e Unhandeijara Lisboa, “Poesia viva”, 1977) e prediz o que atiça as normas da escrita (Lenora de Barros, “Poema”, 1979) e da categorização (Ricardo Aleixo, “Meu negro”, 2018).
Incategorizável é também o corpo queer e pornô de Eduardo Kac, que, como a versão mais desnuda e desbundante de Flávio de Carvalho e o seu traje executivo tropical,[7] sai às ruas do Rio de Janeiro nos anos 80.
Não espanta, aliás, que Kac tenha concebido o seu primeiro holopoema na mesma década (“HOLO/OLHO”, 1983) e chegado, com base na sua quarta dimensão, ao poema do espaço 2 décadas mais tarde. Uma, a holopoesia, e outra, a space poetry, concernem, respectivamente, à tridimensionalização do significante, um corpo tão vivo como o que o lê noutro tempo, e à ocupação humana e poética do espaço extraterrestre a partir da reinvenção do próprio corpo – sem nacionalidade, gênero ou gravidade e antítese da definição.
9 PASSOS ANTROPOFÁGICOS OU MORDIDAS NO ESPAÇO
A reinvenção do corpo que, ao flutuar anti-gravitacionalmente com o poema,[8] abandona as restrições do logos e, sobretudo, da escrita alfabética romana, diz, em primeiro lugar, respeito à antropofagia. Com efeito, o que acontece entre o verso praxinoscópico de Aranha, que quis saltar visualmente para fora da página, e o poema palpável, segue coerentemente a lógica da devoração. À medida que a palavra desce na hierarquia para encontrar a imagem, o som, o gesto, o palato e desaparece em quantidade do poema, o corpo antropofágico emerge gradualmente para apoderar-se deste novo quadro poético-anárquico de expressões.
E vice-versa.
À medida que, ao assumir várias formas não-verbais, o corpo antropófago vai comendo a palavra, ou descobrindo o todo que a imposição da palavra encobre, o poema vai, pouco a pouco, transformando-se no organismo que dá mordidas estrategicamente violentas no espaço.
Esta forma de violência, tão provocadora quanto humorística, que, também ao devorá-lo, amplia técnica e socialmente um conceito caro à cultura brasileira, não podia não ser exclusivamente corporal – à violência exercida sobre os corpos das colonizadas, reduzidos a corpos não-pensantes e classificados discriminada e verbalmente por gênero, animalidade ou raça pela entidade cerebral e abstrata do colonizador, responde-se com a violência da mordida do corpo indefinido que se exibe e rebela contra a imposição do sistema comunicativo de poder.
A correspondência entre o desenvolvimento do poema expandido brasileiro e 9 passos antropofágicos por mim formulados, lembra-nos, além disso, que, apesar de muitas vezes associada a um capricho estético difícil de ler e ensinar, a intermedialidade, que afronta espaço-temporalmente as leis do Ocidente, é sempre política.
Primeiro passo antropofágico: poema-olho.
Segundo passo antropofágico: desenho-ilustração.
Terceiro passo antropofágico: poema-desenho.
Quarto passo antropofágico: poema verbivocovisual.
Quinto passo antropofágico: poema tridimensional.
Sexto passo antropofágico: poema não-verbal em quadrinhos.
Sétimo passo antropofágico: poema comestível.
Oitavo passo antropofágico: poema-corpo.
Nono passo antropofágico: poema no espaço.
Segundo passo antropofágico: desenho-ilustração.
Terceiro passo antropofágico: poema-desenho.
Quarto passo antropofágico: poema verbivocovisual.
Quinto passo antropofágico: poema tridimensional.
Sexto passo antropofágico: poema não-verbal em quadrinhos.
Sétimo passo antropofágico: poema comestível.
Oitavo passo antropofágico: poema-corpo.
Nono passo antropofágico: poema no espaço.
PATRÍCIA LINO. NOVE PASSOS ANTROPOFÁGICOS OU MORDIDAS NO ESPAÇO.
A INFRALEITURA
Como colocar, então, em pânico[9] a perspectiva linear da análise, bem como os seus alicerces diacrônicos, e a própria matéria ensaística?
Falo de um novo tipo de ensaio acadêmico, a “infraleitura”, que, a par do desenvolvimento modernista espaço-temporal da poesia brasileira, se posiciona engenhosamente perante o objeto de estudo, ao recusar um procedimento “meramente temporístico-linear”[10] e manipular criativamente a qualidade plúrima do poema. Este segundo plano ensaístico de criação transgride e entorta, à semelhança da tradução ou tradutora haroldiana que, ameaçando “o original com a ruína da origem”,[11] reencena o começo, o corpo retilíneo da leitura analítica e interpretativa normatizada. E fá-lo, neste caso, com base na propriedade pluridimensional do fazer expandido com o objetivo de valorizar e esclarecer criticamente a expansão.
Memória, limitação, começo.
Quadro 0: lembro-me de ilustrar, em 2007, “Sobre um poema” (2004) de Herberto Helder durante uma aula que me aborrecia. Como o poema, o desenho crescia indestrutível para fora dos limites da página.
Quadro 1: em 2009, organizei, como estudante graduada da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, a exposição Vinte Passos para o Verbivocovisual, em que, além dos trabalhos de Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari, incluí os trabalhos de, por exemplo, Ana Hatherly, Alexandre O'Neill, E. M. de Melo e Castro, Salette Tavares ou Edgard Braga. Por ser difícil, custoso ou até mesmo impossível acessar reproduções de qualidade de vários dos poemas destas autoras, acabei reproduzindo eu mesma as composições com vista a imprimi-las em grandes dimensões. O gesto de entrar ativamente no poema para desenhá-lo fez com que entendesse melhor cada uma das composições.
Quadro 2: em 2012, ilustrei, como estudante de mestrado da mesma faculdade, e enquanto escrevia uma tese sobre os seus trabalhos completos, vários poemas de Manoel de Barros. O processo de ilustrar estes textos não só acompanhou o processo de escrita como, mais tarde, se transformaria em livro, e também o influenciou – a ponto de destravar, algumas vezes, a escrita e colocar em prática, com formas e cores, o que o ensaio defendia. Entre outras questões, a infância ou inversões humorísticas de tamanho entre corpos humanos e não-humanos.
Quadro 3: entre 2015 e 2018, dirigi várias oficinas de poesia e ilustração em 5 países diferentes (Estados Unidos, Brasil, Portugal, México e Colômbia). Em cada uma delas, foi pedido às participantes, cujas idades variaram entre os 6 e os 70 anos de idade, que ilustrassem um poema. Apesar de todas conhecerem os textos previamente, o exercício de enfrentar corporalmente o poema permitiu-lhes ver o que nunca tinham visto durante uma e outras leituras convencionais.
Quadro 4: em 2017, escrevi, pela primeira vez, sobre “Código” de Augusto de Campos. Até aqui, as análises que existiam, e que variavam entre artigos e capítulos de tese, encaravam verbalmente a enigmagem[12] de 1973 ao descrever, limitadamente, a disposição das letras (C-Ó-D-I-G-O) incluídas na composição. Foi só depois de infraler “Código” que reparei na correspondência perfeita entre a sua organização visual e a sua organização sonora e vi, com base na etimologia do título, um tronco de árvore decepado. À decifração de “Código”, que consistiu na escrita de um pequeno ensaio sobre as minhas conclusões, seguiu-se a criação de um vídeo. “Caudex” transpõe para uma linguagem audiovisual as conclusões do ensaio e é, ele mesmo, parte fundamental do ensaio sobre “Código”.[13] Pus, de imediato, métodos semelhantes em prática durante a análise de outros poemas de Augusto, como “Viva vaia” (1972) ou “Pentahexagrama para John Cage” (1977),[14] e de textos exclusivamente verbais. Entre eles, “Caracol” (1905) de Ruben Darío, “El viaje” (1925) de Salvador Novo, o primeiro verso de “Jandira” (1941) de Murilo Mendes, “For the White Person Who Wants to Know How to Be My Friend” (1978) de Pat Parker ou “Cierra los ojos” (1988) de Idea Vilariño.
Quadro 5: estes exercícios de leitura intermedial antecederam a redação da minha tese de doutorado, Concentric Strike. Inter-semiotic and Interdisciplinary Relations in Brazilian Poetry of the 20th Century (2018), que, ao dedicar-se à análise e resgate dos trabalhos híbridos de várias autoras brasileiras, veio expor, de modo sucessivo e perante tais objetos de estudo, as limitações da análise logocêntrica.
Quadro 6: experimentar, uma vez mais, as limitações do ensaio tradicional, cujas regras não me permitiam entender realmente a riqueza indisciplinada do poema evidentemente expandido, conduziu-me não só à criação da infraleitura como termo e prática, mas também ao estudo ainda mais aprofundado do desenvolvimento da expansão da poesia brasileira dos séculos XX e XXI. Um e outros complementaram-se porque a infraleitura acompanha metodologicamente a entrada das faculdades do corpo autoral e co-autoral no poema no fazer intermedial das vanguardas no Brasil ou, como gosto de chamar-lhes, os 9 passos antropofágicos ou mordidas no espaço.
Quadro 7: além de ser ditada pela forma original do ποίημα, a infraleitura obedece a um princípio democrático. O que quer dizer que, assim como se amplia para testar a matéria com o propósito de ler, este modo expandido de enfrentar o texto adapta-se igualmente à diversidade da recepção. Antes de nomeá-la ou estabelecer, (humoristicamente), os seus princípios, pedi, como professora de poesia e cinema, vários exercícios de infraleitura às minhas estudantes. Sobre estes exercícios, devo notar que
- foram sempre recebidos, nas 2 universidades onde ensino e ensinei (UCLA e Yale University), com entusiasmo tanto por estudantes graduadas quanto por estudantes da pós-graduação.
- todos foram, sem ressalvas, antecedidos pela apresentação, discussão e contextualização do tema. Por exemplo: a infraleitura de um ou mais poemas tridimensionais foi sempre e não só antecedida por uma ou mais aulas sobre a própria questão da tridimensionalidade, mas também sobre o percurso poético que explica gradualmente e abre portas à tridimensionalização do poema na América do Sul ou em Portugal.
- nunca foram sinônimo do fim dos exercícios pedagógicos mais tradicionais (comentários, apresentações ou ensaio final). As estudantes trabalharam, na verdade, consideravelmente mais do que trabalhariam numa aula que inclui apenas exercícios tradicionais.
- podem servir-nos analiticamente em relação a vários objetos literários. Mas revelam-se forçosos no caso daqueles que são evidentemente expandidos.
- através deles, as estudantes, que, como todas nós, se expressam de modos diferentes, puderam, enfim, expressar-se.
- fizeram com que as estudantes lessem efetivamente os textos em análise. Sabemos que qualquer uma pode vir para a aula sem ler ou ver o filme em discussão, o que muitas vezes resulta na descrição do próprio texto pela professora e na consequente perda do próprio tempo de aula, mas ninguém produzirá uma infraleitura sem ler com atenção, provavelmente mais de uma vez, o objeto em análise e os seus paratextos.
- permitiram-nos, sem dificuldades e mais depressa, fazer da sala de aula um ambiente de partilha e colaboração.
- foram sempre, e sem prerrogativas, acompanhados da exposição das próprias estudantes, que explicaram – sem cair na tentação de explicar tudo – a(s) ideia(s) por trás da infraleitura e o processo da sua execução.
- foram avaliados segundo os mesmos princípios com que avalio os exercícios mais tradicionais; centrados, acima de tudo, na originalidade, no esforço, na ousadia, na conveniência em relação à proposta inicial e no prazo acordado entre todas.
- as infraleitoras desenvolveram uma relação notavelmente mais compreensiva, íntima e prazerosa com o objeto de estudo.
- as estudantes tomaram a iniciativa de fazê-los naturalmente sem que eu o exigisse.
- em alguns destes encontros, algumas estudantes também produziram voluntariamente infraleituras das infraleituras feitas pelas colegas ou por mim.
O estabelecimento (maleável) dos seus princípios.
A infraleitura deverá
- desenvolver-se sempre desde um ou mais impulsos intermediais.
- partir do pressuposto de que todo ensaio é um tropeço para a incompletude, e tropeçar.
- apoiar-se nas ideias de universalidade e multilinguismo que guiam o fazer do poema expandido.
- responder à dúvida das mais céticas através da relação exclusiva, não-original e híbrida que a análise estabelece com o poema[15] e lembrar que o ensaio amplia a natureza expandida do poema.
- expandir-se até outras matérias quando o recurso a estas matérias for tão ou mais adequado e frutífero do que a palavra.
- fazer uso de materiais e técnicas visuais, videográficas, sonoras, performáticas ou da junção de duas ou mais técnicas entre as referidas.
- para lá da impressão, acontecer performaticamente num ou mais espaços públicos.
- espantar a leitora ou a ouvinte durante o processo de assimilação do poema.
- construir-se sobre o estatuto do insubstituível: o ensaio académico tradicional jamais poderá dizer tão claramente o que a infraleitura não diz.
- fundar-se a partir do seguinte pressuposto: a qualidade do espanto ou do pasmo define a qualidade e a conveniência da análise
- evitar ser adulta sem continuar a ser criança.
Nome.
Do prefixo grego, infra-, que nomeia em grego antigo a ação de ir “por debaixo” de alguma coisa, + leitura, a infraleitura diz respeito, antes de mais, à ação de infiltrar-se por debaixo do objeto de análise. Diz também respeito, e não sem ironia, a um método analítico assumidamente inferior ao método analítico tradicional.
Inque tuo sedisti, academiae, saxo.
Senta-te tu também, oh academia! sobre o pedregulho. O prefixo infra- também faz referência ao inframundo, ao que foi, existe e vem debaixo, e, em particular, a um novo canto órfico que, contra a repetição, circularidade e mecanização da academia, se impõe para deter-nos por instantes; e, como interrompeu as penas eternas dos castigados, permitindo a Sísifo sentar-se na sua enorme pedra e descansar ao fim de tantos e longos séculos,[17] nos liberta diabolicamente das rédeas verbais da interpretação.
A utilidade espantosa.
Oblíquo e paramórfico, este novo ímpeto ensaístico, que sequestra as possibilidades comunicativas do poema e desenvencilha a análise acadêmica de um sufoco historicamente discursivo, depara-se, em primeiro lugar, com outro obstáculo circular: se o ensaio logocêntrico valida academicamente o poema híbrido, o que validará academicamente a infraleitura?
De fato, as mais céticas desconfiarão, ao perguntar o que traz de realmente útil esta forma de análise híbrida, da validade e do propósito do ensaio expandido, e nada o poderá justificar tão completamente como a utilidade espantosa.
Espanto, performance, coletividade.
Sirvo-me, em primeiro lugar, do significado duplo de espanto que, em espanhol, assusta e, em português, surpreende. Ao infiltrar-se por debaixo do poema, a infraleitura, que existe precisamente entre o susto e a surpresa, deverá espantar a leitora ou audiência com o propósito de transportá-las até a um espaço pré-poético de silêncio. Lá, e à semelhança da poeta e da ensaísta, a leitora ou ouvinte cruzar-se-á com a pluralidade deshierarquizada das faculdades do corpo.
Além de transgressiva, a origem do espanto distingue-se por ser não-verbal e vem evidenciar o desconforto causado, em primeiro lugar, pela diversidade e enfoque anárquico-expressivo das matérias que compõem o poema. Este lugar de silêncio é antecipado pela mudez que circunda, nos primeiros instantes, o poema, e, ao mesmo tempo, pela prática camuflada da própria infraleitura.
Por não se limitar ao espaço da página e acontecer corporalmente no espaço público de um colóquio ou de uma aula, a infraleitura poderá ser descrita como uma performance que se desenvolve coletivamente. São, aliás, a performance da infraleitura e a recepção da infraleitura num espaço coletivo que definem e, muitas vezes, enriquecem pedagogicamente a sua qualidade e conveniência; que parte da infraleitura surpreendeu mais as ouvintes? Qual das infraleituras foi mais rapidamente compreendida pelas estudantes?
Uma forma decolonizada de ler.
Se, por um lado, me surpreende que o estudo inclusivo dos corpos e das formas de expressão colonizadas nem sempre corresponda, no universo acadêmico, ao questionamento criativo e sensorial da inclinação ocidental para categorizar, descrever e explicar exaustivamente todas as coisas, por outro, surpreende-me que tal inclusividade não conduza naturalmente a academia ao questionamento da sua própria metodologia e, acima de tudo, da escrita como forma única do conhecimento; e, consequentemente, à integração de outras formas do saber no espaço da universidade. Mais do que alçar como categoria a bandeira dos estudos queer, feministas, animais ou raciais e incluí-la no currículo, ler decolonialmente tudo com o corpo.
E uma forma interventiva de ler.
O que quer dizer, ao mesmo tempo, que, em casos extremos, a infraleitura poderá, ao recriar para não-entender, intervir politicamente sobre o objeto em análise. Como, por exemplo, no caso de Oswald Psicografado de Décio Pignatari, em que, ao cruzar-me regularmente com passagens evidentemente misóginas, decidi fazer, com recurso aos mesmos materiais que Décio usou em 1981, Décio Psicografado.[18]
O que tem propriamente de rigoroso esta versão parodicamente feminista e decolonizada de Oswald Psicografado?
A transformação de uma expressão como “— Devo tudo à carne dela” em “Lhes devemos tudo a elas”, do desenho de “país/ coração/ e o saco” em “um país/ um coração/ e uma xoxota [...]/ (dos três, a última e mais desconhecida)” ou, à semelhança do humor de Edgardo Antonio Vigo em “Latin American Cult — European Version” (1975), de “meu nome diz:/ nasci na selva brasileira/ (mas preferia ser franco-alemão)” em
meu nome diz:
nasci na Europa
(mas queria ter nascido
na América do Sul)
propõe, sem grandes aparatos, outro modo de interpretar e, acima de tudo, partilhar a interpretação.
Há, certamente, algo de tão corporalmente exigente na mão que não-entende quanto no exercício paródico que, para recriarem o objeto em análise, se entregam à técnica e à manipulação do conteúdo para, sem cair no erro de o cancelar, conversar com Décio. Para lá de qualquer processo de resistência ser concebido justamente com base no erro, a conversa interessa efetivamente muito à infraleitura, que encontra na prática do diálogo um modo coletivo de pensar sobre o fazer do poema.
Tocar o quadro (infinito) no museu, ou A conversa grande.
O diálogo forma-se, além disso, com base no prazer, na democratização da leitura e, finalmente, na dessacralização do estatuto das suas intervenientes: Augusto toca o intocável Catulo, eu toco os intocáveis Augusto e Catulo.[19] Se pensar sobre o fazer expandido como a recriação infinita e acrônica, direta ou indireta, de outros poemas, ou sobre a leitura como uma forma válida e naturalizada de co-autoria (possibilidade levantada com mais clareza a partir dos anos 50 com o poema verbivocovisual) supõe desarmar a individualidade, o estatuto e a originalidade[20] do autor tradicional e, consequentemente, da obra, infraler suporá, por sua vez, o desmantelamento do autor tradicional, da obra e do ensaísta tradicionais. Sem fim, uma “dobra de dois”[21] – 3 ou 4 –, a infraleitura poderá ser variada de modo inesgotável e beneficiar da potência inequívoca da diferença da própria repetição.
A multiplicação intertextual das intervenientes que se juntam para conversar deverá, portanto, estar por trás da infraleitura e da variação da infraleitura: ler decolonialmente Augusto significa ler decolonialmente Catulo e ler decolonialmente a infraleitura de Patrícia significa ler decolonialmente Augusto e Catulo.
Ainda: a variação da infraleitura poderá ser feita por aquela que a escreveu em primeiro lugar ou, obviamente, por outra ensaísta, e ganhará muito, pela sua dimensão ilimitada, com o formato digital que, sem recorrer a uma nova impressão, garante à(s) ensaísta(s) a rapidez e o conforto propícios ao exercício de repetição.
[1] Ana Hatherly, A Reinvenção da Leitura: Breve Ensaio Crítico Seguido de 19 Textos Visuais. Lisboa: Futura, 1975, p. 5.
[2] Reparo, por experiência, que o salto entre as três expressões é, sobretudo, geográfico e acontece, respetivamente, entre o Brasil, Portugal e os Estados Unidos. Há também, entre estas expressões, outra que muito me agrada e se usa menos do que as anteriores: “poema indisciplinado”.
[3] Perguntei, em 2020, durante o começo d’“O prazer rigoroso e a leitura pós verso”: o que é mais legível para quem não domina o grego antigo, uma passagem da Ilíada ou o “O ovo” de Símias de Rodes? Este último, feito no séc. III a. C. e um dos três poemas visuais, com “O machado” e as “Asas”, de Símias de Rodes. Cf. Cibertextualidades. Porto: Universidade Fernando Pessoa, 2020.
[4] Já o objeto, que é criativo, pode ser crítico. Cf. Selected Essays. London: Faber and Faber Limited. 1934, pp. 30-31.
[5] “Ao mesmo desembargador Belchior da Cunha Brochado”. Cf. Poemas Escolhidos, org.: José Miguel Wisnik. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 205.
[6] Refiro-me ao poema-carimbo “Miramar” feito a quatro mãos por Oswald e Inácio. Cf. O Perfeito Cozinheiro das Almas deste Mundo. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul/Globo, 2014, s/p.
[7] Experiência n. 3, 1956.
[8] Cf. https://www.ekac.org/performance.
[9] Cf. “Inner Telescope”, 2017, https://www.ekac.org/inner_telescope-new.
[10] Aproprio livremente a expressão de Haroldo de Campos: “Em matéria de literatura, é sempre bom colocar-se, de quando em quando, a diacronia em pânico”, Transcriação, org.: Marcelo Tápia e Thelma Médici Nóbrega. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 10.
[11] Haroldo de Campos, Op. cit., 2006, p. 118.
[12] Op. cit., 2013, p. 56.
[13] É assim que o autor denomina “Código” ao incluir o poema na secção “Enigmagens” (Viva Vaia 1946-1976, 2014).
[14] A análise detalhada deste poema pode ser lida na Infraleitura 3.
[15] Cuja análise detalhada pode ser também lida na Infraleitura 3 deste livro.
[16] Apesar de a minha atenção se centrar no poema concreto ou expandido, nada impede que a infraleitura assente igualmente na natureza indisciplinada do poema de código convencional com o propósito de expandir um dos seus aspetos evidentemente visuais ou sonoros.
[17] Ov. Met. X. 40-49.
[18] Infraleitura 2, Livros de poemas com desenhos.
[19] Infraleitura 3, 5.5.10.
[20] Cf. Marjorie Perloff, Unoriginal Genius: Poetry by Other Means in the New Century, Chicago, The University of Chicago Press, 2010.
[21] Expressão de Deleuze. Cf. A Dobra – Leibniz e o Barroco, trad.: Luiz B. L. Orlandi. Campinas: Papirus, 2009.
UM EXEMPLO DE INFRALEITURA: “AMOR” (1928) DE OSWALD DE ANDRADE [EXCERTO]
PATRÍCIA LINO. REPRESENTAÇÃO DO JOGO SONORO ENTRE AMOR, HUMOR E RUMOR COM BASE EM LIMA MENDONÇA E SÁ (1983).
A leitura mais completa de “Amor”, poema de abertura de o Primeiro Caderno do Alumno de Poesia Oswald de Andrade, foi feita por Antonio Sergio Lima Mendonça e Álvaro de Sá em 1983 [1] que, apoiados na morfologia dissilábica do conjunto, começam por apontar que “os componentes do binômio amor-humor irão se tornar dessacralizadores das expectativas geradas pela metáfora romântica”.
A possibilidade da queda do h aspirado, gerada pela semelhança fonética entre amor-(h)umor, permite colocar, no mesmo plano, “amor” e “umor”, e constitui o primeiro grande passo deste exercício metonímico de desmistificação. Ao aglutinar “amor” e “umor”, a(o) leitor(a) chega até “rumor”, o terceiro elemento da composição. Começado por “r” que, na “concepção romântica”, “enfeiava o poema” [2], “rumor” sugere sinteticamente, a partir do que resta da diferença do binómio, o desmantelamento da estrutura tradicional e simétrica do amor romântico ou cortês, estendendo, assim, ao Primeiro Caderno a ideia do amor bruto e selvático cujas grosserias que já perpassavam “Secretário dos amantes” em Pau Brasil (“Beijos e coices de amor” [3]).
O menino do Primeiro Caderno, cujo percurso escolar começa na bifurcação de dois topoi da literatura ocidental, o amor (= sério, linear, extenso) e o humor (= cómico, não-linear, curto [4]), estuda a tensão e a desigualdade de tratamento que há muito existia entre eles na literatura luso-brasileira para optar pelo segundo, menos clássico, trabalhado e generalizadamente avesso à perceção unilateral do mundo.
Oswald resgata a seriedade cómica ou o cómico sério dos antigos ou do próprio Gregório de Matos que, ao não separar o tema do amor do juízo satírico, se especializaram na seriedade do chiste, com o propósito assumido de reverter o encadeamento temático do amor-Amor e de evidenciar a validade do rumo irreverente, mordaz e humorístico de certa e subversiva tradição literária.
O estatuto invisibilizado deste tipo lúdico e cínico de criação é, além disso, sugerido pela disposição formal e tipográfica do poema. “Amor”, que abre, como título, o texto, não só aparece grafado a vermelho, mas também sobressai, em tamanho e espessura, comparativamente ao primeiro e único verso da composição (“humor”). “Humor”, impresso a negro e itálico abaixo do título e o estímulo visual do processo de multiplicação semântica da estrutura, materializa, em simultâneo, a condição periférica do riso e a persistência com que a gargalhada se foi e vai desdobrando por dentro e, sobretudo, por fora do circuito poético.
Há, porém, um detalhe que parece passar despercebido aos olhos da maioria das críticas. À semelhança de todos os poemas de o Primeiro Caderno, Oswald também inclui, a par do texto, um desenho. O desenho, no mínimo, enigmático “(cogumelo? árvore? roda-gigante?)” [5] e tão inacabado quanto vago, em que Rudá de Andrade vê, horizontalmente, um canhão [6], assemelha-se, para mim, a uma roda de bicicleta invertida. Esta, por sua vez, lembra-me a primeira peça readymade de Marcel Duchamp, Roda de Bicicleta (1917), e expande justamente, caso imaginemos uma roda de bicicleta rodando ininterruptamente, o movimento imaginário da propagação circular do “rumor”.
A possibilidade da queda do h aspirado, gerada pela semelhança fonética entre amor-(h)umor, permite colocar, no mesmo plano, “amor” e “umor”, e constitui o primeiro grande passo deste exercício metonímico de desmistificação. Ao aglutinar “amor” e “umor”, a(o) leitor(a) chega até “rumor”, o terceiro elemento da composição. Começado por “r” que, na “concepção romântica”, “enfeiava o poema” [2], “rumor” sugere sinteticamente, a partir do que resta da diferença do binómio, o desmantelamento da estrutura tradicional e simétrica do amor romântico ou cortês, estendendo, assim, ao Primeiro Caderno a ideia do amor bruto e selvático cujas grosserias que já perpassavam “Secretário dos amantes” em Pau Brasil (“Beijos e coices de amor” [3]).
O menino do Primeiro Caderno, cujo percurso escolar começa na bifurcação de dois topoi da literatura ocidental, o amor (= sério, linear, extenso) e o humor (= cómico, não-linear, curto [4]), estuda a tensão e a desigualdade de tratamento que há muito existia entre eles na literatura luso-brasileira para optar pelo segundo, menos clássico, trabalhado e generalizadamente avesso à perceção unilateral do mundo.
Oswald resgata a seriedade cómica ou o cómico sério dos antigos ou do próprio Gregório de Matos que, ao não separar o tema do amor do juízo satírico, se especializaram na seriedade do chiste, com o propósito assumido de reverter o encadeamento temático do amor-Amor e de evidenciar a validade do rumo irreverente, mordaz e humorístico de certa e subversiva tradição literária.
O estatuto invisibilizado deste tipo lúdico e cínico de criação é, além disso, sugerido pela disposição formal e tipográfica do poema. “Amor”, que abre, como título, o texto, não só aparece grafado a vermelho, mas também sobressai, em tamanho e espessura, comparativamente ao primeiro e único verso da composição (“humor”). “Humor”, impresso a negro e itálico abaixo do título e o estímulo visual do processo de multiplicação semântica da estrutura, materializa, em simultâneo, a condição periférica do riso e a persistência com que a gargalhada se foi e vai desdobrando por dentro e, sobretudo, por fora do circuito poético.
Há, porém, um detalhe que parece passar despercebido aos olhos da maioria das críticas. À semelhança de todos os poemas de o Primeiro Caderno, Oswald também inclui, a par do texto, um desenho. O desenho, no mínimo, enigmático “(cogumelo? árvore? roda-gigante?)” [5] e tão inacabado quanto vago, em que Rudá de Andrade vê, horizontalmente, um canhão [6], assemelha-se, para mim, a uma roda de bicicleta invertida. Esta, por sua vez, lembra-me a primeira peça readymade de Marcel Duchamp, Roda de Bicicleta (1917), e expande justamente, caso imaginemos uma roda de bicicleta rodando ininterruptamente, o movimento imaginário da propagação circular do “rumor”.
(esq.) OSWALD DE ANDRADE. PRIMEIRO CADERNO DO ALUMNO DE POESIA OSWALD DE ANDRADE. 1927.
(dir.) MARCEL DUCHAMP. RODA DE BICICLETA. 1917.
(dir.) MARCEL DUCHAMP. RODA DE BICICLETA. 1917.
PATRÍCIA LINO. APROXIMAÇÃO VISUAL DE AMOR E RODA DE BICICLETA (1917) DE MARCEL DUCHAMP.
A associação entre Oswald e Duchamp não espanta, porque, afinal, Oswald vinha fazendo exercícios readymade verbais, como quem devora o estabelecido, desde a publicação de Pau Brasil. Mas amplia consideravelmente as possibilidades de interpretação do poema. Assim como apropria simbolicamente “Amor” (= tradição literária ocidental prestes a ser subvertida), Oswald apropria metonimicamente uma das partes da bicicleta (= objeto familiar prestes a ser re-significado) [7].
A inversão do desenho precede, por outras palavras, a inversão do conceito.
PATRÍCIA LINO. APROXIMAÇÃO AUDIOVISUAL DE AMOR E RODA DE BICICLETA (1917) DE MARCEL DUCHAMP.
[1] Poesia de Vanguarda no Brasil: de Oswald de Andrade ao Poema Visual. Rio de Janeiro: Edições Antares, 1983, pp. 46-48.
[2] Idem, p. 48.
[3] Op. cit., 1990, p. 111.
[4] “O chiste diz o que tem a dizer nem sempre em poucas, mas sempre em palavras de menos”. Cf. Sigmund Freud, Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente, v. VIII. Rio de Janeiro: Imago, 1980 [1905], p. 26.
[5] Augusto de Campos, Op. cit., 2018, p 18.
[6] Lembro o que diz Augusto de Campos: “Segundo Rudá de Andrade, a posição correta do desenho seria mesmo a [horizontal] da primeira edição. Ele se recorda de um comentário de Nonê (Oswald de Andrade Filho), afirmando que a imagem representaria um canhão da guerra de 1914”, Op. cit., 2018, p. 21. Este canhão desengonçado lembra, obviamente, o canhão doméstico de Serafim Ponte Grande que era, de acordo com ele próprio, o “único cidadão livre [daquela] formosa cidade, porque [tinha] um canhão no [seu] quintal”, Oswald de Andrade, Serafim Ponte Grande. São Paulo: Globo, 1997, p. 76.
[7] Este readymade de Duchamp voltaria a ser apropriado por Regina Silveira cinquenta e seis anos mais tarde. Cf. “In absentia MD”, Bienal de São Paulo, 1983.