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INFRALEITURA. DIAGRAMA 1. IMPERATIVA ENSAÍSTICA DIABÓLICA. 2024. Não é muito o que sabemos sobre a configuração do inferno antigo. Mas sabemos, a julgar pelo que escreveram Homero, Virgílio e Ovídio, que os romanos se dedicaram mais do que os gregos a organizá-lo por secções. A secção dos que morreram por amor. A dos que se suicidaram. Ou a dos que cometeram crimes atrozes em vida e foram, por isso, condenados a um ou mais castigos circulares e eternos.
A última das secções foi minuciosamente descrita por Ovídio no livro X das Metamorfoses. Lá penam Tântalo, Tício, Ixião e Sísifo. Submerso até à boca e rodeado por árvores de fruto, Tântalo tenta beber e comer em vão: a água desaparece sempre que abaixa a cabeça e os frutos somem quando tenta agarrá-los. O castigo de Tício é praticamente igual ao de Prometeu. De dia, a águia devora-lhe o fígado; de noite, o fígado cresce; no dia seguinte, a águia regressa para devorá-lo. E assim sucessivamente. À semelhança de uma estrela de cinco pontas, as mãos e as pernas de Ixião estão presas às quatro extremidades de uma enorme roda de madeira. Além de girar ininterruptamente, a roda chamusca todas as partes do corpo do homem que matou, no mundo dos vivos, um familiar. O pior dos crimes aos olhos dos gregos antigos. Sísifo, que enganou a morte e não se contentou ao caloteá-la apenas uma vez, empurra um pedregulho gigante montanha acima. O pedregulho rola depois montanha abaixo, Sísifo desce atrás dele com o propósito de empurrá-lo outra vez. E assim sucessivamente. No livro X das Metamorfoses, Orfeu, que convenceu momentos antes Cérebro e Caronte a deixá-lo entrar no inframundo, passa pelos quatro supliciados. E toca magnificamente a lira. O talento de Orfeu para dedilhar as cordas interrompe temporariamente a circularidade das penas. Tântalo pode enfim beber, a águia, aquietada, não come, o movimento da roda detém-se e o pedregulho, que parou de rebolar, equilibra-se na terra. E é então que surge o meu verso favorito: “inque tuo sedisti, Sisyphe, saxo” (e também tu, oh Sísifo, te sentaste sobre a tua pedra). Sorrio ao imaginar Sísifo descansando, sentado — sentado! — sobre a pedra. Sísifo respira tranquilamente. Sísifo suspira. E pensar — até que a melodia de Orfeu desapareça no espaço e o castigo recomece e se repita eternidade adentro. Era este o verso que tinha na cabeça quando chamei à infraleitura, metodologia ensaística que proponho em Imperativa Ensaística Diabólica (Relicário, 2024), “infraleitura”. Como se a infraleitura, que provoca, com ilimitados humor e rigor, os académicos a pensar intermedial e performaticamente para analisar o poema, dissesse: “inque tuo sedisti, academiæ, saxo” (e também tu, oh academia, te sentaste sobre a tua pedra). E esta voz que afirma viesse de baixo, do fundo mais fundo, do infra mas nem por isso inferior, e decidisse pela qualidade e maior dificuldade do jogo e do espanto. Deixando, ao mesmo tempo, de lado a repetição monótona e homogénea da análise do poema; que é, desde dos seus inícios, heterogéneo e multiforme. É, por outras palavras, um convite à suspensão do que vimos fazendo tão mecânica quanto circularmente, investigando e ensinando poesia ou, se preferirem, o literário, na universidade. Et nunc, cum consedisti... visne mecum ludere? e agora que te sentaste queres jogar comigo?
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AuthorPatrícia Lino is a poet, an essayist, a performer, a translator and Associate Professor of poetry and visual arts at UCLA. Archives
October 2025
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