PATRICIA LINO
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[DA ANTOLOGIA DE POEMAS NÃO É ISTO UM LIVRO. COLÔMBIA. 2020.]
CALHANDRAS

O canto das calhandras é infinito.
O canto de várias calhandras é ensurdecedor.
Antes de ser ave, a calhandra era um cesto onde as mulheres depositavam os excrementos que, mais tarde, despejavam no Tejo.
Quando se agrupavam junto ao rio para despejar os excrementos, as calhandreiras, que não falavam nunca, falavam, por fim, umas com as outras.
O som da calhandrice chegava até Telheiras.
O verbo calhandrar não existe, mas podia, e antecipa a eternidade do canto das aves.
Picture
​
​CALEIDOSCÓPIO

A suspensão coloidal das nuvens no trânsito.
O número de habitantes de Singapura
(新加坡共和国, 5 000 000, [114.º]).
Estar de joelhos onde acabem as tuas costas.
A cor azul dos teus atacadores no tapete
da entrada. Uma péssima tradução de Aristóteles.
Andar para trás na Pan-American Highway.

Como não há semelhanças entre um vinil dos Smiths
e um moinho de vento? São ambos processos
de fragmentação: please please please
let me get what I want


Os solavancos homéricos do autocarro nas manhãs
onde não beijo ninguém. O crânio dançante das galinhas.
Saber que o jazz se ouve de barriga para o ar.
O rapaz que me disse aos 6 que eu era uma varanda
ensinou-me o que era uma metáfora. A + B = C.
Saber quantos fonemas tem a língua portuguesa.
Expulsar o gato. Ficar a sós com Schrödinger
na caixa. "Só plantará um jardim de cabeça para baixo
quem não ler a Historia Plantarum". Naná quem disse.
Uma ferida é a interrupção da continuidade do tecido
corpóreo. "Nonsense Botany" foi o que escrevi
num bilhetinho para Naná. Naná não respondeu. São 31.

Se Sócrates sorriu para a morte de dedo em riste,
por que não haveria eu de sorrir-te na fila do metro?
A primeira nódoa na camisa foi a tua boca.
​A indecisão do pássaro em afogar-se no charco ou
o primeiro salto dos jogos olímpicos. Pintar um quadro
numa praia de nudistas. O movimento centrífugo
que os mamíferos desenham antes de deitar-se.
Aprender que o amor não é um rondó: três couplets,
quatro ritornellos, um coração só, A-B-A-C-A-D-A
mão no seu lugar: aos ombros te carrego pelos lábios.
A tosse pneumática a 15 de novembro. As unhas raspadas.
O suicídio do hamster Tobias a 5 de janeiro. Cf. Werther.
A minha festa de aniversário de 1999. A tua saia. Tu.
O último massacre do Sudeste Asiático, quão caro está
o tabaco, o preço da papaia, uma nação nas meias.
Ser perpendicular à porta de tua casa. A vermelha,
que rodopiava. O lavatório, o queixo. Dois olhos
no espelho: girl, girl that I see,/ is there a literary-est
mirror than me?
UM QUADRO BRANCO SOBRE UM FUNDO BRANCO
 
Quando Malevich pintava
os pássaros eram destinados a rectângulos
e as mãos das raparigas a linhas horizontais
vermelhas azuis verdes ou amarelas
que eram as cores com que Malevich não pintava
pássaros ou mãos de raparigas
mas a subtração entre os dois.
 
Notável a destreza com que Malevich suspendia
o dedo indicador sobre a mesa para dizer
Não é mais preciso pintar aquilo que se vê
Mas ninguém entendia Malevich
e Malevich aborrecia-se.
 
Aspirando à prática das suas considerações
Malevich tinha os dois pés sobre um banco
quando numa das tardes de 1915 terminou
um quadrado preto sobre um fundo branco.
Fumava uma cigarrilha e hesitava:
Mostrá-lo aos amigos, aos alunos?
Expô-lo numa galeria, colocá-lo no museu?
Um quadrado preto sobre um fundo branco.
Que mais podes querer, Kazimir Malevich?
Um quadrado preto sobre um fundo branco.


Mas Kazimir Malevich queria mais:
um quadro branco sobre um fundo branco.
Eriçaram-se em 1918 os cabelos de Malevich
perante aquela forma que não era outra coisa
senão a eliminação de todas as formas.
Malevich pensou: nunca mais pinto um quadro.
Aleksandra Ekster pensou: Malevich nunca mais
pinta um quadro. Mas Malevich pintou.
Muitos esqueceram até o que Malevich disse
com o dedo em riste num atelier em Verbovka
Resta-lhes apenas a imagem do seu indicador volátil.
 
Alguns juram ainda tê-lo ouvido murmurar em 1935
como se alinhasse a testa com a morte:
Então a tua lição, Kazimir Malevich, nunca esteve
na eliminação de todas as formas
mas na impossibilidade de eliminá-las.
 
Por isso um quadro branco sobre um fundo branco
serve unicamente para:  
 
1) redestinar os rectângulos a pássaros
2) abrir as paredes e destrinçar todas as cores
3) entender que o grito antecipa a boca
4) desenhar bocas para o grito
5) isto é, desbocar
A PANTUFA


I
 
As nossas enormes pantufas tinham orelhas, bocas e dentes
para que desbravássemos o chão, a casa e os pais
e suportássemos com um leão nos dedos o frio português
 
As pantufas vendem-se no supermercado, são para crianças
(porque os adultos, alguém disse, parecem ridículos com elas)
e o seu preço sobe ou desce a partir do quão exótico o animal é.
 
Mas nem todas as pantufas têm a forma de um animal, exótico ou não,
e nem todas as crianças têm pantufas, com a forma de um animal ou não.
Nós tivemos um par cada um, cuidámo-lo, crescemos e esquecemo-lo
 
como esquecemos o conforto do nosso país, da casa e dos pais
por agora desbravarmos outras terras e outros idiomas, estrangeiros,
tu e eu sem um leão nos dedos, com algum azar, solidão e brio.
 

II

 
Pantufa vem do francês pantoufle; em inglês diz-se slipper
(do verbo to slip, e lembra slippering, que é um castigo
a chicotadas, reguadas ou chineladas. Atroz, absoluto).
 
Pantufla, do espanhol, tem entre as fonéticas a mais cheia
e confortável: como devem ser de resto as próprias pantufas
inventadas ninguém sabe ao certo por quem nem quando
 
e onde. Este, Oeste, século XII. Regalia certamente de poucos
cobiçada talvez por alguns e desconhecida de muitos, a pantufa
mais antiga do que o astrolábio, existe há tanto tempo como a bússola
 
e há quase tanto tempo como a ambulância. A pantufa não consta
entre os objetos que se levariam hipoteticamente para uma ilha deserta.
A pantufa não salva nem alimenta. Aquece. E como qualquer objeto

​III
 
foi adquirindo ao longo do tempo novas funções e feitios. No século XXI
a pantufa é usada nos desertos dos Estados Unidos: El Paso, Arizona
ou San Diego. Feita à medida de todos os sapatos indocumentados
 
a pantufa, vendida por mexicanos a mexicanos, cobre as pegadas
dos que, numa mão, carregam os filhos e na outra a garrafa de água.
A garrafa de água, forrada com fita-cola, afasta o sol; evita também o reflexo
 
do sol no plástico e o disparo de uma AR-15. Não parecem ridículos
os indocumentados ao longo da fronteira. A pantufa, maciça e multiplicada
prediz o número de corpos desaparecidos. As famílias dos mortos jamais
 
recebem de volta as pantufas. Há por isso quem, além das garrafas forradas
colecione pantufas perto de onde os indocumentados e as indocumentadas tombam.
O debate entre os artistas estadunidenses que trabalham com pantufas e garrafas
 
é essencialmente estético e inútil: limpar ou não a pantufa antes de colocá-la
no museu? Mas não há nenhuma estética na pantufa, maciça e multiplicada
ao longo da fronteira nos pés dos indocumentados. Não há estética onde não há Deus.

​[DOIS TEXTOS PUBLICADOS NA REVISTA TXON. CABO-VERDE. 2020.]
​A MÍMICA DAS ONÇAS
 
Os ameríndios não se moviam como os europeus, porque tinham o poder de ser onças. Onçar. Isto incomodava muito os europeus, que caminhavam de um modo sério e estreito. Mas o que incomodava mais os colonos era o silêncio dos ameríndios, que, por terem superpoderes, dispensavam as palavras e sobretudo a escrita. Imitavam, além disso, o modo como os europeus se moviam, porque a artificialidade do movimento, tão distante da destreza animal, lhes parecia muito engraçada.
 
Não havia como responder à mímica das onças, porque a um exercício mímico deve responder-se sempre, como numa breakdance battle, com outro exercício mímico. E os europeus só conheciam as palavras.
 
O exercício mímico vence, de resto, o exercício oratório. Foi por esta razão que o gesto concreto de Diógenes, que soltou um galo na ágora, ultrapassou a ideia comparativa de Platão.
 
Foi também por esta razão que a arte da performance nasceu nas Américas.
 
E é também por esta razão que o humor é uma forma de violência.

A MÃO DEFORMADA
 
A mão deformada escreve o poema
A mão deformada apaga o poema
A mão deformada reescreve o poema
A mão deformada guarda, discreta
e por tempo indefinido, o poema.
A mão deformada descreve o poema
A mão deformada edita o poema
A mão deformada publica o poema
A mão deformada vende o poema
A mão deformada compra o poema
A mão deformada interpreta o poema
aventurando-se, de bic azul em punho
nos lares semióticos, sintáticos, táticos
agramáticos, bióticos, visuais e exóticos
da palavra infernal. “Ali está, e grunhe
horrivelmente”. A mão não se detém.
A mão deformada aperta o poema
A mão deformada sublinha o poema
A mão deformada analisa o poema
A mão deformada inspeciona o poema
abafa-o, sobrevaloriza-o, vira sobre ele
café ou vinho, uma mancha eclética.
A mão deformada categoriza o poema
A mão deformada define o poema
A mão deformada parodia o poema
escrevendo outro poema, rasga-o
come-o, faz dele um aviãozinho e
se tiver mais arte, um barquito, pato
cisne ou workshop gratuito de origami.
A mão deformada complica o poema
A mão deformada teoriza o poema
A mão deformada compara o poema
a um filme tardio de Federico Fellini
ou a uma maçã fuji em decomposição.
A mão deformada disseca o poema
A mão deformada transcreve o poema
A mão deformada parafraseia o poema
A mão deformada desemprega o poema
e a poeta, que são no fundo muito úteis
pois o que ocuparia a mão deformada
senão o poema, a poeta e a inutilidade
dos três? O machado afiado do talhante
ou a agulha de mão do senhor alfaiate?
A mão deformada costura o poema
A mão deformada defende que o poema
é feminista, machista, queer, colonial
trans, homofóbico, fascista e (suponho
que também) ecológico, ilógico, racial
e (suponho que tudo, menos) classista.
A mão deformada mastiga o poema
A mão deformada rasura o poema
A mão deformada incendeia o poema
A mão deformada reescreve o poema
recomeçando assim o círculo milenar
de todas as mãos deformadas, até que
num dia solarengo como outro qualquer
a mão deformada, que é como qualquer
outra mão, morre. E depois de cremada
e depositada nas águas pelos discípulos
vem substitui-la, com a mesma certeza
penetrante e magra, outra mão deformada.

[POEMA PUBLICADO NA CAPIVARA CULTURAL. BRASIL. 2020.]
PEQUENA TRAPAÇA ENGENHOSA
 
Obedeço aos impostos anuais e às instituições onde ensino
poesia, desaprendendo a pátria, o belo, o cânone e a praxe.
Sou uma mulher leal, ordinária e tenho alguma dificuldade
em posicionar-me verticalmente no hábito e na prática.
 
Obedeço à respiração, ao sol e cada vez mais ao cansaço
dos dias úteis, reconhecendo a luz e a beleza espontânea
que há em inspirar e expirar, tremendo, uma e outra vez
até à morte, ao sonho e à memória. Sou um rapaz terno
 
que obedece às regras de segurança e tédio dos aeroportos
à gravidade, à visão, à escuta. Deposito no verso o sopro
do que vejo e escuto, e escrevo de cabeça erguida, ouvido
voltado para a reverberação do grande mundo reprimido.
 
Obedeço ao poema, que é o silêncio em fala, a curvatura
do meu corpo até ao chão, noventa graus um pouco tortos
e interessam-me os tortos, o mundo coxo. Vou de orelha
encostada às nossas mães e avós, de olho e retina aguçados
 
sobrevoando a história total. Interessam-me o estudo aéreo
e o rigor panorâmico das aves. Sou uma galinha, descendo
do antigo quetzalcoatlus e ataco, visceral e gorda, o antigo
e masculino consórcio dos deuses. O poema é um tijolo alado. 
 
Obedeço sobretudo ao amor, aos semáforos e aos sinais de rua.
Um assegura os outros, os outros asseguram o amor. A carne
interessa-me também, como me interessam os sismos, a dor
as mãos e as correntes de água. Trepo o diospireiro da casa
 
com o único propósito de comer. Caio, ascendo e incendeio
o jardim. Sou uma menina muito delicada e é com delicadeza
que projeto o poema monstruoso, como um ralo no Pacífico
e logo adormeço. Nasci para exercer o feminino e o atómico.

​[DOIS TEXTOS PUBLICADOS NA REVISTA ESCAMANDRO. BRASIL. 2020.]
Era uma vez um poeta que perguntou numa sessão de poesia portuguesa: o que é escrever? Foi reprovado pelos olhares cortantes dos ouvintes. Sentiu-se tão mal que nunca mais explorou outras formas de escrita e, em menos de um ano, dizia sem pestanejar que a poesia era feita de palavras. Tinha muito medo de perguntar o que as palavras eram.

​Plasticina.
São como a plasticina.
Fazem acontecer, entretém e desfazem coloridamente a vida.
*
Quase não tenho amigos poetas, porque os poetas são muito parecidos com os cristãos. Querem e lutam muito por um lugar no céu. Se escrever trouxesse reconhecimento, estariam certos.

Não estão certos. Não são poetas nem cristãos.
Antes o céu que o reconhecimento.

​Preferivelmente, nenhum dos dois.
*
O beija-flor bate as asas 200 vezes por segundo. O que fizemos nós de tão grandioso, Mariana?
*
Da lista de profissões abaixo, quem você salvaria na eventualidade do mundo acabar e a humanidade poder recomeçar o mundo noutro lugar?

(imagine uma lista que inclui 15 profissões diferentes)

Há um certo prazer em dizer que ninguém escolheria os poetas e o prazer pertence exclusivamente aos poetas.
*
Era uma vez um poeta que perguntou: o que é escrever? E foi maravilhoso.
*
O poema chega quando cruzo a rua para ir comprar pãezinhos. Quantos pãezinhos mais até ao último dos poemas?
*
Vamos refletir sobre o significado do significado. Vamos refletir sobre refletir sobre o significado do significado. Vamos.

​

​
OS GIGANTES DE TENOCHTITLAN

mil quinhentos e vinte e um

Como destruir um templo e construir outro?
Os espanhóis quiseram dar o exemplo quando
ao chegar ao México, decidiram: “destruiremos
o Templo Mayor e (apesar de não conseguirem
pronunciá-los) Huitzilopochtli, Tlaloc”. Ação:
com a mão de obra dos aztecas e usando a matéria
do Templo, “carregarão as suas próprias pedras
até reconhecerem, sem queixa ou interrogação
Deus-todo-poderoso”, os espanhóis ergueram
a Catedral de Zumárraga perto das novas ruínas.

mil quinhentos e trinta e dois – sessenta dois

Era pequena, e não satisfez o desejo codicioso
de grandeza universal (ainda que o universo
fosse mais pequeno nesses tempos). “Temos
então de construir outra”, disse um dos espanhóis.
“Obviamente”, disseram todos os outros. O Papa
anuiu. Construíram-na. Usaram mais ou menos
dois séculos até terminá-la, porque dois séculos
equivaliam, em tempo, à qualidade da grande
voraz nação espanhola. O seu nome, pio e sólido
além de hierático, dura outros dois séculos. Assim:
​

La Catedral Metropolitana de la Asunción
de la Santísima Virgen María a los cielos

mil quinhentos e vinte e um –

Porque o inimigo andava extremamente ocupado
e distraído, os aztecas, que carregavam as enormes
pedras do próprio Templo (mais sofisticado e belo
do que as duas catedrais espanholas), venceram
em silêncio, inteligentes, esta disputa sagrada. Como?
Memorizando, em cada um dos milhares de calhaus
um deus. Yolotsin. E, quando o inimigo adormecia
preocupado com o capital investido na terceira nave
os índios e as índias escapavam, gigantes, para rezar
ajoelhados à pedra. A matéria viva e a própria vida.
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